Vambora, Miguelito!

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[Escrevi este texto há exatamaente dez anos, no dia 21 de julho de 2002. Nascia Miguel, meu sobrinho. Eu estava devastado pelo fim de um casamento. Hoje, em homenagem ao Miguel, que aniversaria, e à vida, que sempre se ajeita, republico]

Tabatinga, Alto Solimões, vinte e um de julho, 04:30h da madrugada. O galo canta. Aliás, os galos cantam. Cada um mais vaidoso que o outro. A impressão que tenho aqui do quarto do hotel é que a cada tufar de peito e explosão de som, eles olham para os lados e desafiam uns aos outros, como adolescentes se desafiam em concursos de arrotos.

À sinfonia de galos vaidosos se junta o cantar do celular, rasgando a madrugada de contemplação e introspecção. Mais uma, diga-se de passagem. Atendo entre ansioso e aliviado e vejo que é o Mauro, meu irmão. Feliz como pinto na merda. Nasceu o Miguelzinho, seu primeiro filho. Minha mãe toma-lhe o telefone para dizer que o menino é branquinho e pimbudo, avó vaidosa como os galos cantores tabatinguenses, falando do esporão do rebento. Espero que, se não ajudar, ele não atrapalhe. Que o menino seja a cara da mãe, linda.

Venho para o computador para escrever sobre isso, sobre ser pai. Não adianta dizer que sou desqualificado para falar sobre o assunto porque ainda não sou pai. Eu tenho um grande pai, conheço bons e maus pais. E quero ser pai. Qualificação suficiente. Os galos agora estão cada vez mais vaidosos e aumentam em número e potência seu cântico. Adolescentes desafiados, sabe como é… Abro o programa de música e mando tocar qualquer uma entre as que tenho aqui armazenadas. Talvez a música sobreponha o barulho do galinhame. Peço que o computador escolha aleatoriamente. Um cachorro faz o backing vocal da sinfonia dos galos aqui ao lado. Ele é barítono, o danado.

O computador escolhe Vambora, da Adriana Calcanhoto. Apropriada: Entre por essa porta agora/ e diga que me adora / você tem meia hora / pra mudar a minha vida/ Vem, vambora/ que o que você demora/ É o tempo que leva/ Ainda tem o seu perfume pela casa/ Ainda tem você na sala/ Porque meu coração dispara/ quando tem o seu cheiro/ dentro de um livro/ dentro da noite veloz.

Meu irmãozinho, o caçulinha dos homens, agora é pai. Lembra, mano, quando a gente brincava de super-homem contra “todos” lá na casa da rua três? Tu sempre eras o super-homem e eu era o “todos”. E tu sempre vencias nas nossas brigas imaginárias. Um a um, todos os inimigos que eu encenava sucumbiam dizendo um “ahhhhh” de morte antes de fenecer. Eu te deixava vencer. O super-homem sempre vencia. Aí fostes estudar em Niterói e eu te disse, numa carta cheia de saudades, que a partir dali deverias ser o super-homem mesmo porque o “todos” seria real, criaria mil armadilhas para ti, iria usar kriptonita sempre que pudesse para ti atingir. As brigas não seriam mais dos brinca, mas seriam dos vera. Pois é.

Hoje me volta à mente a brincadeira que costumávamos curtir na infância, rolando na cama do beliche ou no sofá da sala. E me volta com ela a vontade de dizer, com conhecimento parcial de causa, que está na hora, de novo, de ser o super-homem e se preparar para mais um embate contra o “todos”, sabendo que agora estás mais vulnerável porque tens uma coisinha que vais amar mais que tudo, mais até que a ti próprio. E que por isso não dormirás mais, tendo que estar sempre alerta para protegê-lo do malvado “todos”.

Como na trilha sonora do computador, Miguelito entrou pela porta agora, vai dizer que te adora e já mudou a tua vida. Ele olha para ti, com seus olhinhos que ainda não aprenderam a ler o mundo, e faz um convite ao qual tu não podes dizer não: “Vambora!”. O seu perfume vai impregnar a casa, teu coração vai disparar muito por ele, como sei que está disparado agora como um AR-15 recebendo policiais no morro. Esse moleque vai te roubar a mulher e tu, ainda assim, vai amá-lo sem medida. Vocês têm uma vida toda pela frente, sem pausa. Dias e noites velozes. Para sempre. A música da Adriana Calcanhoto foi muito bem escolhida. É uma luva. Às vezes penso que esse computador pensa…

Mano, sei que é difícil, senão impossível. Mas tenta ser um pai igual ao nosso. Acabei de falar para meus alunos para serem incrédulos em relação às receitas prontas, que eles precisam reinventá-las antropofagicamente e eu aqui dando uma para ti. Pri, minha irmãzinha, tenta ser uma mãe igual a nossa também. Eu sei que nossa família se mete muito, mas é por amor, como tu sabes. Como tu podes ver agora aí nos teus braços. Sabe, acho que só a intenção fará de vocês os melhores pais do mundo. Mas não quero ficar dizendo o que vocês têm que fazer. ‘Magina, logo eu. De toda forma,  com vocês converso depois, quando eu chegar aí. Deixa eu falar com ele, o palmitinho pimbudo.

Miguelito, titio. Seja bem-vindo. O titio está longe e triste. Longe por trabalho e triste por um monte coisa que você um dia irá entender, mas que espero que entenda como espectador, se bem que acho que ninguém se livra disso. Mas o titio está muito, muito feliz por ti, por tu vires mudar o mundo e nossa família de uma forma que ainda não descobrimos plenamente. E sabe, tio, deixa eu te dizer uma coisa que um dia disse ao teu pai: nesse mundo a gente tem de ser uma espécie de super-homem, pois o “todos” parece conspirar contra nós. Há pessoas más, há pessoas mesquinhas, há pessoas invejosas, há pessoas pegajosas, há pessoas falsas, há pessoas que cobram. Há pessoas insensíveis, há inimigos invisíveis. Há dores. Há tristeza.

Mas a conspiração do mal, por assim dizer, perde para a conspiração do bem, para os sangue-bons. Existe a Sala de Justiça. Há pessoas boas, pessoas generosas, pessoas solidárias, há pessoas amorosas, há pessoas verdadeiras, há pessoas que doam. Há pessoas sensíveis e amigos visíveis. Há amores. Há alegria. Você nasceu em uma família abençoada por Deus e protegida por Nossa Senhora. Teve a mesma sorte que nós. Que sorte, nada! Benção divina.

Os galos continuam cantando alto e forte, a despeito do sol que está chegando e já pedindo para eles pararem com esse festival de vaidades. Só que eles não param. E isso me faz lembrar outra história, contada pelo Rubem Alves, numa tarde de conversa em Campinas, de saudosas lembranças. É assim:

O galo cantava todo dia. Aprontava-se, penteava a plumagem, passava Neutrox 2 e ia para o lugar mais alto do galinheiro. Perguntado pelos críticos do galinheiro – há sempre críticos nos galinheiros – por que fazia aquilo todos os dias, ele respondeu: “Porque se eu não cantar o sol não nasce”. E na sua convicção, estufava diariamente o peito e cantava. E o sol nascia. E todos ficavam orgulhosos e agradecidos. Invejavam positivamente o galo e sua capacidade de trazer o dia na voz. Mas o galo, como o cachorro do Magri, também é um ser humano. E falha. Um dia dormiu demais e esqueceu-se de cantar. Mas o sol nasceu mesmo assim. E todos, surpresos, descobriram que o sol nascia independentemente do galo cantar. O galo ficou morto de vergonha e sumiu. Não apareceu por uns bons tempos. Sua razão de cantar – ou aquela que parecia ser sua razão – cessara, sumira. O sol era independente dele. Que pena.

Um dia, um belo dia como hoje, todos acordaram ao som do clarinar do galo. Forte, alto, tenor. Lindo e belo, abria suas asas e cantaricava seu galicanto. Os críticos vieram, já azedos e afiados, e perguntaram, preparando-se para a zombaria: “Ei, galo! Por que cantas? Para o sol nascer?” O galo respondeu: “Não. Canto porque sou poeta. E os poetas tem suas razões. Não canto para ele nascer. Canto porque ele nasce.” E continuou a cantar, deixando os críticos sem palavras.

Miguel, seja pois um poeta na vida. Cante com toda força de seus pulmões, ainda frágeis, conhecendo e se adaptando ao ar novo dos novos ares. Cante por suas razões, por suas causas. Cante não para o sol nascer, mas porque ele nasce. E não ligue para os azedos do galinheiro, para o “todos”. Apenas fique antenado e saiba que eles existem. Mas eles passam. Eu sei disso e vou ficar de olho. Seu pai sabe disso e vai ficar atento.

Os galos pararam de cantar. Recolheram-se para compor novos poemas. Como as flores que graciosamente recolhem suas pétalas uma a uma ao fim do dia. Amanhã estarão de volta. Porque o sol nasce.

Já que estamos em clima de Adriana, seguinte: dá a mão aqui pro titio, menino pimbudo. Vambora para vida nova! Nós dois. Vamos ver as cores cujo nome a gente não sabe, as cores de Almodóvar, cores de Frida Khalo, cores. Pela janela do quarto, pela janela do carro, pela tela. Enfim, pela janela das novas vidas, a tua e a minha, que se inauguram hoje.

4 comentários em “Vambora, Miguelito!

    Larissa Lobo disse:
    21/07/2010 às 09:46

    Ai, chorei!

      Sérgio Freire respondido:
      21/07/2010 às 09:47

      Eu também, Lara. E muito. Mas passou. Sempre passa…. =)

    Tatiane Freitas disse:
    21/07/2010 às 12:12

    Lindo! Chorei!…de emoção, de satisfação por saber através de mais um texto seu que há espaço no mundo para pessoas que querem fazer parte da Sala de Justiça. Quero encher essa sala! Levar várias pessoas pra lá! Vambora! =)

    Vambora: uma história de amor « disse:
    05/01/2011 às 21:48

    […] cidade a 1.100 Km de Manaus, já na fronteira com a Colômbia. Escrevi um texto chamado “Vambora”, baseado na letra da musica da Adriana Calcanhoto. No texto, saudava a chegada da vida nova do […]

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