Olhai os lírios do campo
“Tendo Deus terminado no sétimo dia a obra que tinha feito, descansou do seu trabalho”. Assim diz a Bíblia no Gênesis, falando da criação do mundo. Na minha época de catecismo na igreja de Aparecida, havia uma professora catequista cujo nome a memória guardou em algum lugar inacessível. Seu rosto de boneca Emília, no entanto, me é bem nítido. Num daqueles sábados ensolarados, aquela jovem professora me disse que as respostas para todas as nossas perguntas estavam naquele livrinho grosso com um fecho éclair. Aquela frase me pegou de jeito. Naquela época eu achava que as todas as respostas estavam no Manual dos Escoteiros Mirins do Huguinho, Zezinho e Luizinho, sobrinhos do Pato Donald. Das duas uma: ou a Bíblia tinha plagiado o Almanaque Disney ou o Almanaque Disney havia copiado as ideias da Bíblia. Verificando que o livro religioso era mais velho do que o gibi, dei o crédito para Deus, sem no entanto deixar de desejar o Manual, um livro mágico que certamente mexeu com a imaginação de muito guri na década de 70.
Tenho andado meio angustiado e cansado das coisas. Lembrando então da professora catequista, resolvi pegar a minha Bíblia para tentar entender a razão. Fui buscar respostas onde deveriam estar, como prometera a professora. Sendo catequista, claro que ela deveria saber o que estava dizendo. Abri a Bíblia aleatoriamente e fui bater exatamente na passagem que começa esse escrito. Tentei então fazer a ponte: o que Deus queria me dizer com isso? Será que eu tenho que descansar? Descansar do quê, mais especificamente? Fiquei imaginando a época em que a gente podia tirar essas dúvidas diretamente com Deus, como fizeram Moisés e Abraão. “Como assim, Deus?”, “Deus, dá pra explicar melhor esse negócio aí?”, “Ok, Deus, escreve aqui nessas tábuas um resumo do que tens para me dizer e depois a gente conversa para tirar as dúvidas”. Seria mais interessante ouvir a voz de Deus diretamente, sem a necessidade de padres e pastores que a interpretam para nós, sempre a partir de seus anseios e desejos humanos. Fechei os olhos e tentei ouvir a voz de Deus, como Charlton Heston em Os Dez Mandamentos. Queria ser o próprio Pablito Calvo, o menino de Marcelino Pão e Vinho e ficar tête-à-tête com Ele. Como queria falar com Deus, fiz o que manda o Gilberto Gil na música. Apaguei a luz, calei a voz, folguei os nós dos sapatos, dos desejos, dos anseios. E dormi.
Acho que Deus passou, falou e o belezinha aqui dormiu. No entanto, quando acordei já tinha a resposta. A inspiração divina ficou. O Todo – Todo-Poderoso é só para os menos chegados – queria me dizer exatamente o que diz no Gênesis: se até eu que sou Eu descansei, quem és tu, pobre caboquinho pávulo baré, para querer viver numa roda-viva sem descanso, vivendo mais angustiado do que barata de barriga pra cima, zanzando de um lado para o outro, que nem bolacha em boca de velha? Foi aí que Deus se encontrou com Karl Marx.
Marx dizia que é preciso entender como a sociedade se estrutura para poder propor análises e mudanças. Por isso estudou a fundo o capitalismo, elaborando conceitos interessantíssimos que ainda hoje – no capitalismo tardio – vivemos literalmente na pele. Um desses conceitos é a noção de mais-valia. Para quem fugiu das aulas de sociologia, aqui vai um exemplo caricato: um professor recebe xis por uma hora-aula, que é o tempo em que está na sala de aula com seus alunos. Só que para estar lá, ele precisa ler, estudar, preparar a aula, corrigir as provas, etc etc. Esse tempo excedente não é pago pelo patrão. Ele (o patrão) se apropria desse tempo, acumulando esse excedente e transformando em lucro. É a essência do capitalismo: quanto maior a produção e menor o salário, maior será o lucro. “Sim, mas cadê o encontro de Deus com Marx?”, já pergunta um leitor mais ansioso.
A tese de Deus: é preciso trabalhar e fazer bem feito, mas é necessário descansar também, meu filho. A antítese de Marx: no sistema capitalista, parte do trabalho do homem é apropriada pelo outro, companheiro. A síntese do Sérgio: quanto mais eu trabalho, menos eu descanso e mais sou explorado, meu caboco. Alguém vai ficando muito mais rico e eu vou ficando bem mais cansado. Por sua vez, o cansaço atinge não somente o meu corpo, mas também minh’alma, para usar uma contração que tem um charme religioso. Que faço eu? Deixo de trabalhar, então? Deus, o que fazer? Recorri à receita de Gilberto Gil de novo: deitei e esqueci a data, perdi as contas, tive as mãos vazias e pus a alma e o corpo nus. Dormi de novo, na esperança de que a resposta me fosse dada.
Essa técnica do Gil funciona mesmo. Ao acordar, tinha na cabeça a ideia que buscava. De início veio uma frase surrada: “O trabalho é importante e dignifica o homem”. Além disso, é o trabalho que garante o toddynho e o croissant com provolone do papai aqui. Então não posso deixar de trabalhar. A bem da verdade, nem quero. Gosto muito do que faço e já escrevi sobre isso. Mas preciso olhar com mais cuidado para minh’alma. E para dar uma boa guaribada em minh’alma, eu definitivamente preciso descansar. Descansar não significa dormir o dia inteiro. Descansar é esquecer do trabalho, mas lembrando das pequenas grandes coisas da vida. Abri de Bíblia de novo e ela me diz, em Eclesiastes 3, que “há um tempo para cada coisa na face da terra. Comer, beber e gozar do fruto do trabalho é um dom de Deus”. Juntando Marx e Deus de novo, decidi que vou trabalhar somente nos meus dias e horários de trabalho (essa é minha colaboração contra o capitalismo, companheiro professor), portanto fazendo o meu trabalho ser mais bem pago. Vou usar a experiência para tentar fazer mais em menos tempo. No tempo da mais-valia, apropriado por meu patrão, vou comer, beber e gozar o fruto de minha lida do horário trabalhado e efetivamente pago.
Portanto, já decretei: não mais trabalho aos domingos e feriados. Nesses dias, quero encontrar a minha família, rir com meus irmãos, espairecer com meus amigos, cafungar a minha mulher. De segunda a sábado, tudo bem, batente. Mas domingos e feriados são dias de descanso. Descanso junto à família, aos pais, irmãos, amigos, cônjuge, gato, o escambau a quatro que não seja ligado ao trabalho. Chega de ouvir minha mãe reclamando que ando sumido, meu pai mandando recado dizendo que está com saudade, como se vivêssemos em países distantes. Esse tempo precisa ser recuperado. É tempo para rir, se divertir, ver um filme de Chaplin, ouvir a coleção inteira do John Lennon, tomar café da manhã na estrada, jogar boliche, ler Florbela Espanca, coçar o saco, que seja. É tempo de tomar um banho na piscina do condomínio caro que pago e raramente uso porque tenho que trabalhar em casa. Isso já me rendeu até uma bronca do Roberto, o porteiro do meu prédio: “Seu Sérgio, aproveite seu patrimônio. Vá pra piscina, seu Sérgio…” Agora decidi mesmo: quero esquecer completamente as pequenezas e picuinhas do trabalho. De preferência de bubuia na piscina. Quero ler um livro sem culpa pela pilha de trabalhos para corrigir, sem ficar angustiado pela prova que ainda tenho que elaborar ou por aquele parecer sobre aquele processo que eu preciso dar.
Arrisco dizer que esse mundo véio sem porteira seria bem melhor se as pessoas ouvissem um pouco mais a Deus e a Marx. A Neila, a menina que limpa e arruma aqui em casa, me disse sobre o assunto em questão: “Seu Sérgio, o trabalho existe para nos ajudar a viver. Viver para o trabalho é inverter a ordem das coisas. É uma questão vetorial. Se nós não invertêssemos as coisas, não precisaríamos tanto de analistas e psicólogos, de Dorflexes e Lexotans. Não reclamaríamos tanto de falta de tempo para conversar com nossos queridos e seriamos certamente menos estressados. Teríamos filhos mais bem educados, seríamos menos neuróticos e mais tolerantes. Teríamos uma vida qualitativamente muito melhor e menos belicosa”. Pare aí e pense, leitor querido: a Neila tem ou não tem razão? Você trabalha para viver ou vive para trabalhar? Você permite que seu patrão se aproprie do tempo em que você deveria estar com sua família para que ele possa cada vez mais usufruir a dele? É justo isso? Você entra mesmo nesse jogo capitalista de corpo e alma? Avalie seriamente essa questão, reflita e me mande um e-mail. Aposto minha coleção de corujas que a maioria das pessoas vai reconhecer que veste demais da conta a camisa da empresa para a qual trabalha, despindo necessariamente para isso a camisa de outros times, entre as quais a do família e amigos.
Para mim, a mensagem foi clara como a luz do sol, clareira luminosa na escuridão. Trabalho é trabalho. Deve ser bem feito e caprichado. Descanso é descanso. Deve ser bem feito e caprichado. Agora é trabalhar isso na minha cabeça. Melhor dizendo: melhor é descansar minha cabeça do excesso de trabalho. Desligar. Puxar momentaneamente o plugue. E olhar os lírios do campo. Para entender como lidar melhor com o trabalho em uma sociedade como a nossa, sinto a necessidade de reler Marx. Para lidar com o cansaço d’alma, nada como ouvir a voz silenciosa de Deus. Ainda tem gente que acha que esses dois não combinam. Bom, vamos dar um desconto. Certamente essas pessoas devem estar estressadas e já não veem as coisas tão facilmente. Estão precisando descansar. Amém, companheiro.
22 de abril de 2004
28/08/2010 às 11:38
coitado do teu primo Amaro Jr, a orelha dele não esquenta não??
28/08/2010 às 11:38
Tá acostumado!
15/11/2011 às 23:03
preciosa a reflexão. Vou compartilhar e reler diariamente tentando puxar meu freio de mão. Estou precisando muito…