A vida é muito longa
“Todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. A frase de Leon Tolstoi em “Anna Karenina” é um dos inícios mais conhecidos na literatura mundial. A ficção sempre explorou os conflitos familiares porque eles são parte da realidade. Da minha e da sua, caro leitor.
Não há família absolutamente feliz. Em tempos de Facebook, podemos até arriscar e afirmar que há famílias felizes na estética digital. São fotos celebrando os bons momentos, mostrando os passeios na Europa ou na praia, compartilhando a intimidade do casal deitado na cama, comendo pipoca e vendo um filme a dois. Filminhos no Instagram mostrando os filhos passeando de bicicleta, no castelo da Disney com o chapéu do Mickey ou brincando felizes com o gatinho ou cachorrinho da casa. São, sim, momentos felizes. Esses momentos são os únicos autorizados a frequentar assiduamente as redes. No entanto, eles constituem somente uma parte da vida, aquela parte que vive na luz. Ninguém posta – ou raramente posta – conflitos, dramas, brigas, traumas familiares. A parte que habita as sombras é marginal à sociedade em rede. Pelo menos diretamente. É claro que a linguagem vaza e os dramas aparecem aqui e ali num post que diz muito, em um comentário feito de forma recorrente, na ausência de um comentário onde deveria ter um. Um pouco de conhecimento sobre linguagem pode ajudar a ver através dessa opacidade. O ser humano se diz pela linguagem e disso ninguém escapa.
O que me provocou a escrita deste texto foi o filme “Álbum de família” (Ousage County). A história é um amálgama de tudo aquilo que não aparece no Facebook. A sempre magistral Meryl Streep é Violet, a matriarca doente que se vê de repente rodeada pela família após o sumiço do marido. A reunião das três filhas e dos agregados é explosiva o suficiente para fazer brotar conflitos latentes. Vêm à tona mágoas, segredos, fracassos. Surgem os dramas internos (filhos prediletos, escolhas feitas e agora alegadas, sentimentos mal trabalhados pelos irmãos em relação aos outros) e externos (relações falidas, rótulos que grudam e paralisam as pessoas, escolhas de vida que afetam as relações).
Cada vez mais penso que o desequilíbrio bom é constitutivo da vida, assim como o colesterol bom, que limpa as artérias. E preciso não esquecer que “a vida é muito longa”, como diz no filme o pai, Bev, um correto Sam Shepard. Ele cita o poeta norte-americano T. S. Elliot, mas explica que Elliot só foi o primeiro a se dar ao trabalho de colocar a frase no papel porque, no limite, todo mundo já sentiu isso em algum momento. É essa sensação melancólica e definitiva que permeia os personagens de “Álbum de Família” e, penso eu, a família de cada um de nós, para além do Facebook. A questão é até que ponto deixamos o desequilíbrio reger as relações e virar desequilíbrio ruim, que tal qual o colesterol ruim entope tudo e causa infarto. É a válvula da panela de pressão: é necessário achar escapes para aliviar a pressão, senão a gente explode.
Se cada vez mais eu me convenço da necessidade do desequilíbrio para fazer a vida funcionar pelo re-equilíbrio, cada vez mais também eu tenho a certeza de que não dá para viver a vida na inércia quando se trata de sentimentos. Não dá para deixar como estar. É preciso ser proativo. A inércia acaba em desequilíbrio ruim e o desequilíbrio ruim, quando domina, mina e acaba as relações. Eu não posso viver a vida de meus irmãos nem posso deixar que o rótulo de queridinho da mamãe, que meu irmão mais velho tem colado em si desde sempre, afete a minha relação com ele ou com minha mãe. Acho pesado às vezes o rótulo de queridinho do papai que meus irmãos me deram, além de achar muito injusto com meu velho, um pai maravilhoso com todos. Mas isso não pode mudar minha relação com nenhum eles. O que nós, irmãos, temos de entender é que uma relação – qualquer uma – é construída reciprocamente. Somos nós com o outro que lhes damos a configuração que queremos. Por isso, não há relações simétricas, iguais, em família. É impossível dada a diversidade humana. Nas relações, você recebe o que você está disposto a dar. Simples assim. E o que você, leitor, está disposto a dar na relação familiar de que tanto você reclama? Essa é um pergunta vital quando se fala em família. Você já se fez essa pergunta? Pois faça e se surpreenda.
Nós temos duas opções lógicas para lidar com nossos irmãos: a primeira, olhar um vazio, um buraco que falta e que se mostra quando há uma plenificação alcançada por um deles: ficar triste com seu sucesso. A outra, mais saudável para o equilíbrio, é buscar se preencher naquilo que o outro tem e nós não: alegrar-se com suas conquistas. E antes que alguém questione se há alguém que fica triste com a vitória de um irmão eu respondo: muito mais do que você imagina. Olhe para o lado.
Eu adoraria viajar pelo mundo como minha irmã ou ter a capacidade de Fênix do meu outro irmão. Queria mesmo saber tocar um instrumento como o mais velho ou correr atrás da vida mais facilmente como a caçula. Eles talvez gostariam de ter algo que eu tenho, não sei. Mas nossas vidas são diferentes e não faz sentido eu me entristecer pelo que eles têm de bom. Porque se eu me ressinto pela vida dos outros, eu paraliso a minha vida e a congelo por incapacidade de lidar com ela, numa relação que acima de tudo precisa ser fraternal e de bem-querer, senão a vida não vale a pena. As relações afetivas têm de ser ganha-ganha, senão para quê?
É assim: a vida em família é um quebra-cabeças em que cada um traz e põe uma peça. Essa peça foi desenhada e construída pela história que cada um viveu. A peça de um se posta por outro não encaixa e com o desencaixe vêm a melancolia e a tristeza. Ou joga-se junto, cada um com suas peças, e se quebra a cabeça coletivamente nessa existência para montar um quadro bonito ou se chuta a bosta do quebra-cabeça de uma vez e se fragmentam definitivamente os laços. O que vai ser? No filme, o chute no quebra-cabeça é épico. E na sua vida em família, leitor?
Na vida em família é preciso fazer ranger as diferenças sem perder a ternura. É preciso dizer sem ferir. É preciso mostrar sem ser mau. Porque se não se explicita o entrave ou se não se mostra a tensão que constitui qualquer relação, ela se potencializa e explode, levando todo mundo junto. Famílias acabam porque não se permitem olhar suas falhas, apontar seus buracos. Assim, não conseguem parar suas sangrias. A sangria corre desatada muitas vezes nos dois extremos: ou com muito grito ou com muito silêncio. Em ambos os casos ninguém escuta. Cabe a cada um trazer tanto as suas vitórias para a celebração coletiva – e o gozo genuinamente conjunto – quanto as suas dores, para, pelo amor fraterno, amenizar o sentimento doído. Tudo, claro, em torno do almoço de domingo na casa da mãe ou naquilo que lhe represente simbolicamente. Cada um que me lê sabe o que dá liga à sua família.
O paradoxo é que na medida em que cada um vai viver a sua vida, os espaços de compartilhamento tendem a se reduzir. Irmãos pouco se sabem naquilo que deveriam por força da roda-viva. As relações, se não forem bem amarradas, tendem a puir por falta de óleo. Por isso momentos em família são importantes, sejam eles aniversários, orações, o almoço semanal. Mas mesmo para quem acha que perdeu o timing, penso eu, sempre é tempo de retomar os laços, as pendências. Sempre dá para trazer à luz mágoas que ruminam fazendo estragos na escuridão da alma. É preciso trabalhar com afeto aquilo que não dá para postar no Facebook, se vocês me entendem.
A vida é muito longa. Difícil, às vezes. E quando se trata de família, é preciso saber cortar o fio certo. Porque todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Se este texto começou com uma frase de “Ana Karenina”, também termina com outra do mesmo livro, aliás um clássico sobre famílias: ”Toda verdade, todo deleite, toda a beleza da vida é feita de sombra e luz”. O filme “Álbum de família” provoca pensar nas sombras e luzes que escondem e iluminam a verdade, o deleite e a beleza que constituem as relações da família mais importante: a nossa. Assistam lá. Depois abracem seus irmãos e seus pais. Ainda dá tempo. SF
16/01/2014 às 17:51
Tanto a ver comigo e com os meus que, para começo de conversa, vou já compartilhar.