Tá todo mundo louco?

Foto: Emanuela Godoy/ Jornalistas Livres
Sou psicólogo e linguista, com formação em Análise de Discurso. Por essa condição sou constantemente perguntado sobre alguma explicação plausível para o comportamento assustador desses grupos de pessoas que hoje acampam na frente de quartéis, sem aceitar o resultado das eleições, com condutas que, de fora, parecem loucura. Penso que podemos buscar explicações a partir de vários vieses. Mas vamos fazer o recorte a partir desses dois lugares a partir dos quais me sinto confortável para falar: psicologia e linguagem.
Como muita gente já apontou, muitos dos comportamentos de grupo que vemos no pessoal com a camisa do Brasil podem ser explicados a partir do que Freud apresenta em “Psicologia das massas e análise do eu”, de 1921. Nele, Freud afirma que na massa, o indivíduo tem sua afetividade intensificada, sua capacidade intelectual diminuída e suas inibições instintivas próprias suprimidas. O indivíduo se acha ligado ao líder – e aqui a eleição de Bolsonaro ajudou a organizar essa trupe – e aos outros indivíduos por uma energia libidinal. Para se ligar a outros, diz Freud, é preciso se desligar de si.
Na formação da massa, os indivíduos agem como se fossem homogêneos, pois na massa aparecem restrições ao amor-próprio narcisista. Daí a primeira leitura é a de que essa gente parece que saiu de si. “Ele não era assim…”, “Parecem robôs”, “Agem todos da mesma forma!” são constatações comuns.
Se o comportamento do grupo é muito igual, a adesão ao grupo se dá de forma diferente para cada indivíduo que participa do grupo. Sim, há várias motivações para a adesão. Aqui o inconsciente se cruza com a ideologia. Grosso modo, ou a pessoa é motivada por uma falta – a vida sem sentido, por n motivos, encontra um sentido em um grupo que acolhe – ou, também, a adesão é motivada por questões de classe, naquilo que o bom e velho Marx descreveu bem. Ódio inconsciente e às vezes consciente em relação aos pobres. Daí a existência de um bando de gente abastada de verdade (e outros que se acham ricos), bem de vida financeira (uns muitos com o carro financiado em 60 vezes), que são paupérrimos em saúde psíquica. Esse pessoal engrossa o caldo do grupo e financia a sobrevivência da trupe. Há ainda a mistura das duas coisas, sendo, na verdade, um contínuo combinatório. Diga-se que a classificação aqui é meramente didática. Dizendo de novo: se o comportamento do grupo é homogêneo e robotizado, as motivações para aderir fazem parte de um espectro amplo. Mas depois que adere, há uma homogeneidade nos comportamentos. Por que essa homogeneidade? Porque o grupo precisa se perpetuar.
Quando a pessoa acha num grupo a razão de ser, há um grande investimento psíquico para se manter nele. Aí é preciso negociar crenças, valores, ideias. É preciso aceitar e repetir as ideias hegemônicas do grupo sob o risco de ser expelido e ver ruir todo o investimento psíquico inconsciente. Isso acontece com determinadas religiões mais fundamentalistas. Freud também fala disso em “O futuro de uma ilusão”, de 1927, um dos livros sociais de pai da Psicanálise. E o que acontece quando a pessoa entra no grupo e não pensa exatamente como ele? Dá um tilt, mas é preciso se adaptar. Acontece o que Leon Festinger, professor da New School for Social Research de Nova York, chamou de dissonância cognitiva.
A teoria da dissonância cognitiva sustenta que um indivíduo passa por um conflito no seu processo de tomada de decisão quando pelo menos dois elementos cognitivos não são coerentes. Em outras palavras, quando uma pessoa possui uma opinião ou um comportamento que não condiz com o que pensa de si, das suas opiniões ou comportamentos, ocorre uma dissonância. Aí ela tem de decidir e decide pelo grupo, renunciando a si e às suas crenças, pagando esse preço para não ser expulsa do grupo e desabar na perda de seu investimento. As pessoas saem de si, repetem roboticamente as ideias do grupo porque, agora, é isso que ancora sua subjetividade. De novo, é um comportamento de seita, robotizado.
Tudo isso gera um grupo ideológico por identificação, caracterizado por crenças sociais e políticas específicas, ligadas às ideias de direita ou extrema-direita. Esses grupos partem de verdades retóricas parafraseadas do pátria, família, religião. Mas não respeitam a democracia e têm repulsa à diversidade, são ancoradas num moralismo retórico: cobram os outros, mas sempre tem lá no meio o pedófilo, o comerciante sonegador, o homofóbico, o empresário pilantra, a família que escraviza pessoas, o violento misógino, a senhora perfumada racista e por aí vai. Quando esses elementos moralistas de enunciação são descobertos em suas práticas ruins, as redes não perdoam e gritam: “Não falha um!”. E aí vêm os inexoráveis vídeos de desculpa que, quase sempre, são ridículos porque não passam de teatrinho para dar conta de evitar um cancelamento.
É importante notar também que outros discursos que sustentam as mesmas ideias reforçam a noção de pertencimento. Isso se dá por exemplo, com o grupo de pessoas evangélicas, principalmente neopentecostais. Porque as pessoas fazem parte de vários grupos, que podem relativizar ou recrudescer o discurso do grupo dos amarelinhos.
Muitas razões para entrar, uma forte razão para ficar, pagando o alto preço da alienação de si. O comportamento do grupo vai sendo direcionado para sua sobrevivência, praticando atos, criando e disseminando ideias – e as redes digitais, que não existiam nos tempos de Freud, têm um papel importante nessa disseminação – e criando comportamentos de manada que incluem muita violência, física e simbólica. A gente está vendo isso. Há uma irracionalidade que tem como lastro o bando. Horda primeva.
Esse é o esboço de uma explicação. Como qualquer explicação é bastante generalizante. Mas penso que nos ajuda a tentar compreender o que está acontecendo com gente querida e gente nem tão querida assim.
Qual é a saída? Não sei. Só sei que se Freud estiver certo – e costumo apostar nos palpites dele -, quando esses grupos se dissolverem, a quebra vai ser grande, embora tenham ajudado a adensar um discurso ideológico forte. Mas imagine você apostar todas as suas fichas em algo e esse algo que te sustenta desaparecer? Vai haver uma perda de ancoragem subjetiva imensa para muita gente.
Talvez nós, psicólogos, sejamos bastante demandados por essas pessoas. Ou pelos seus queridos que se importam com elas. Porque acho que elas mesmas vão estar bem mal para ter minimamente força para se erguer sozinhas. A ver.
Editar
22/11/2022 às 14:26
Muito bom!
23/11/2022 às 08:35
Excelente!!! Muito preciso e esclarecedor.
23/11/2022 às 10:10
Quando muitas pessoas com concepções delirantes similares se encontram, tendem a reforçar as ideias umas das outras até virar uma psicose coletiva intensa.
23/11/2022 às 16:35
Ótimo ponto de vista para explicar essa “loucura” toda.
O mais extraordinário é que, com um simples exercício hipotético, podemos fazer durante a leitura, pequenas substituições de personagens, de situações, de lugares, de líderes idolatrados, das cores de camiseta, etc. e constataremos facilmente que o “outro lado” da polarização política age de modo IDÊNTICO mas é relutante em aceitar (dissonância cognitiva, conforme destacado) e relativiza para sentir-se parte de um grupo.
Manipuladores provavelmente possuem uma habilidade natural em detectar esse comportamento vulnerável.
Assim, percebemos o quanto a idolatria e a necessidade de pertencimento vulnerabilizam e tornam-se meios manipulatórios de massas.
22/11/2022 às 17:47
Prezado Sérgio: muito coerentes suas palavras. A Sociologia sempre precisou da Psicologia.
A questão do desligamento do EU explica porque tenho tanta dificuldade em participar de movimentos, mesmo daqueles que promovem ações em minha área profissional (conservação da natureza e do patrimônio histórico).
Em face dessa dificuldade, prefiro escrever e divulgar minhas publicações, certo de que elas são minha contribuição para as ações desses grupos organizados da sociedade.
Que maravilha é «O futuro de uma ilusão»,a meu ver um dos clássicos de análise crítica da civilização. Descobri-o aos vinte anos, e desde então o releio com certa frequência.
Grande abraço,
Celso
Celso do Lago Paiva
Santana do Riacho, Minas Gerais
https://www.researchgate.net/profile/Celso-Lago-Paiva/research
22/11/2022 às 19:42
Acredito que em palavras simples, no meu entendimento, são pessoas que pensam e se acham ” superiores” diante da maioria e por não serem notadas sozinhas, se submetem, muitas vezes ao ridículo, como única forma de serem vistas.
25/11/2022 às 10:44
É o caso da senhora que se despe completamente no meio da rua e depois, daquela forma, se posiciona em frente ao parabrisa de um caminhão em andamento.
22/11/2022 às 19:57
Ótimo! Precisamos de algumas respostas para entender o que essa multidão pensa. E porque pensa assim.
22/11/2022 às 20:24
De certa forma, além teoria Freudiana, esse “espírito de manada” é muito detectável ao longo de diversos acontecimentos históricos, tanto na abdicação da individualidade por parte de quem adota a busca por sentido em um grupo, quanto na dificuldade de aceitar o engano cometido diante da negação auto-infligida, o provoca a dificuldade de “largar o osso”.
Me chamou a atenção o trecho “Quando esses elementos moralistas de enunciação são descobertos em suas práticas ruins, as redes não perdoam e gritam: ‘Não falha um!'”. Tal “enunciação”, vindo de um linguista, me remeteu imediatamente a Bakhtin, o que trouxe uma reflexão à mais sobre “significância” nos casos desses discursos automáticos e o que isso pode carregar além do que se diz “gramaticalmente”.
Bom texto.
Abraço!
Rafael – mero curioso.
24/11/2022 às 08:21
Que texto lucido!!!
23/11/2022 às 09:05
Realmente as pessoas perderam o rumo da vida, quem em sã consciência acharia mesmo que poderia reverter um cenário onde a tecnologia abraça. Fico triste pelas perdas de longas amizades, que talvez nem existissem, famílias divididas por algo que nem sabem o quê realmente vai ocasionar.
Espero que recuperem logo a sanidade e voltem a si, porque o Brasil não caminha sozinho, nem somente com um ou outro político, somos uma nação e precisamos trabalhar juntos. É apenas aceitar a drástica realidade, e trabalhar, porque o pão não vem para a mesa sozinho, se você não galgar com o suor do seu próprio trabalho!
24/11/2022 às 07:49
Perfeito! Fui cancelada por 5 amigas (?) de mais de 40 anos de amizade: não discuti sobre candidatos, apenas me posicionei em favor da Democracia e do bem que isso traria para o Brasil! Na manada não existe espaço para o diálogo com a maturidade!
23/11/2022 às 16:35
Ótimo ponto de vista para explicar essa “loucura” toda.
O mais extraordinário é que, com um simples exercício hipotético, podemos fazer durante a leitura, pequenas substituições de personagens, de situações, de lugares, de líderes idolatrados, das cores de camiseta, etc. e constataremos facilmente que o “outro lado” da polarização política age de modo IDÊNTICO mas é relutante em aceitar (dissonância cognitiva, conforme destacado) e relativiza para sentir-se parte de um grupo.
Manipuladores provavelmente possuem uma habilidade natural em detectar esse comportamento vulnerável.
Assim, percebemos o quanto a idolatria e a necessidade de pertencimento vulnerabilizam e tornam-se meios manipulatórios de massas.
05/12/2022 às 07:30
[…] Sérgio Freire também mantém um blog onde publica algumas de suas reflexões. Nesse espaço ele publicou recentemente um artigo que dá o título deste episódio do #FPNS: “Tá todo mundo louco?”. […]