2023
Escolas, ataques e sociedade doente

Vivemos em uma época que clama por explicações fáceis. No entanto, a realidade é complexa e tudo que nela acontece tem gênese multifatorial. Por isso, tentar explicar de forma simples essa onda de ataques às escolas e seus alunos com uma relação causa-efeito automática é ceder à tentação da explicação fácil. Se não há explicação fácil, há coisas a dizer sobre isso, sim.
Para começo de conversa, atribuir esses ataques a questões de patologias mentais, individualizando o que é um sintoma social é um equívoco. Além de equivocado, ainda pode gerar como resultado um estigma para as pessoas psicóticas. Em um artigo publicado em 2021, intitulado “Psychotic symptoms in mass shootings v. mass murders not involving firearms: findings from the Columbia mass murder database”, pesquisadores da Universidade de Columbia, em Nova York, mostram que somente 5% dos tiroteios em massa estão relacionados com doenças mentais graves, como a esquizofrenia ou outro quadro psicótico. Pesquisas mostram que outros fatores contribuem muito mais para ataques em massa, tendo escolas e universidades como alvos preferenciais.
Um fator determinante é a prevalência social do exercício e da disseminação do discurso de ódio. Não é segredo para qualquer pessoa que viveu os últimos anos no Brasil que toda uma teia de discurso de ódio – composta por xenofobia, LGBTfobia, misoginia, racismo, intolerância religiosa e ideológica – foi costurada pelo discurso fascista do bolsonarismo. Esse discurso de extrema-direita se institucionalizou e ganhou corpo e espaço na sociedade brasileira, sendo incentivado e tendo ganhado vida em ataques como os de janeiro em Brasília e como o assassinato do petista em sua festa de aniversário, só para citar dois exemplos entre os inúmeros que vimos. Não foram pessoas psicóticas que perpetraram a violência, mas pessoas normais motivadas ideologicamente e sustentadas no álibi do discurso então oficial.
As políticas governamentais compatíveis com esse discurso, como a liberação do acesso mais fácil às armas e o pouco caso com que grupos minorizados foram tratados, adensaram o discurso de ódio e fez do seu exercício algo mais fácil e concreto. Formulações como “faz arminha”, “vamos eliminar a petralhada”, além do descaso com a vida, com a ciência e com o conhecimento, como o visto à época da epidemia de COVID, sedimentam em parte da população uma banalização da morte e uma espécie de autorização com lastro no apoio coletivo, em um comportamento de manada já estudado por Le Bon, Freud, Reich e outros autores que buscaram explicar o fenômeno da horda primitiva.
Esse cenário é a base sobre a qual vão se agrupar outras questões que levam aos ataques às escolas. Com o discurso permissivo da violência muitas vezes sustentado por seus próprios pais, que negligenciam os efeitos danosos desse discurso, jovens se autorizam a normalizar aquilo que era contido pela barreira do laço social, laço esse que fica cada vez mais puído e se rompe facilmente. E os pais purgam convenientemente suas culpas para alívio pessoal em uma religião de retórica. Essa gasolina pode se encontrar ainda com a faísca do bullying, um problema gravíssimo nas escolas, levando o adolescente normal, mas em sofrimento psíquico, a quebrar os filtros sociais e entrar num delírio provisório, nomeado de foraclusão localizada pelo psicanalista argentino Juan-David Nasio. E aí acontece o que acontece.
Como se já não bastassem o discurso de ódio, a adoção familiar desse discurso, o acesso fácil às armas e o bullying escolar, ainda há um afrouxamento da presença de grupos extremistas nas redes digitais a acolher, interpelar, convocar e dar senso de pertencimento a esse jovem. Esses grupos espetacularizam a violência e buscam a visibilidade como troféu, utilizando a vulnerabilidade potencial do sujeito latente.
Não é pouco. E tudo isso ainda pode tomar proporções geométricas por uma abordagem não recomendável para os meios de comunicação quanto ao tratamento desses eventos como notícia. Algumas pessoas, como muitos assassinos em série e agressores, cometem seus crimes buscando fama e atenção. Desejam ser expostos na mídia e ter sua crueldade idolatrada por pessoas desequilibradas. A mídia enfrenta um dilema: por um lado, tem a obrigação jornalística de noticiar; por outro, não deve permitir que mentes doentias ou criminosos cruéis se aproveitem da publicidade em torno de seus atos. Os especialistas dizem que as identidades de pessoas envolvidas em tais atos não devem ser divulgadas. Afirmam que é preciso condenar um assassino desses ao anonimato. Mas parte da imprensa, ávida pelos likes da sociedade do espetáculo, acaba explorando essas tragédias hediondas para obter vantagem. Esquece-se da cautela ao produzir reportagens baseadas em eventos que envolvem vítimas inocentes e acabam incentivando agressores latentes a buscar visibilidade, reproduzindo os atos de violência em sequência.
Não, não é nada fácil. E é muito doloroso. Precisamos substituir a cultura do ódio pela cultura da paz. Necessitamos urgentemente de políticas que restrinjam cada vez mais o acesso às armas. É fundamental que as escolas lidem seriamente com o bullying escolar e não atribuam tais fatos apenas à negligência parental, se eximindo de suas responsabilidades. É para ontem a necessidade de reduzir a negligência parental. É dever do Estado investir na ampliação da rede pública de suporte à psicopatologia não-psicótica e na valorização da ciência e da cultura. Essas políticas e essas mudanças, combinadas com outras, podem produzir resultados mais substanciais contra essa barbárie que antes era vista como algo do desarranjo cultural dos EUA. Mas, assustadoramente, essa barbárie já bate à nossa porta trazida pelo encolhimento do mundo pelo digital. E, mais assustador ainda, essa barbárie já arromba a porta da escola onde estão nossos filhos. Quanto tempo mais demoraremos a agir? Quantos silêncios entalados ainda ocuparão nossas gargantas?
É. Vou abraçar minhas meninas.
Inteligência Artificial e Educação

A popularização de ferramentas de Inteligência Artificial (IA), como o ChatGPT (Chat Generative Pre-trained Transformer), vai requerer um movimento necessário no processo educacional.
O Chat-bot de IA, como ChatGPT, é um chat de inteligência artificial treinado e projetado para simular conversas entre humanos. O modelo de rede neural utiliza em seu treinamento e aprendizado um enorme banco de dados de textos. Por isso, aprende a gerar conteúdo, frases e parágrafos naturais e compreensíveis para os humanos, com respostas detalhadas. Se se escrever: “Escreva um artigo sobre a importância da água para a vida humana”, o GPT gerará um artigo sobre o assunto automaticamente, com detalhes.
“Como isso pode impactar o processo educacional?”
No processo metodológico, o GPT pode produzir respostas para conteúdos estudados, auxiliando o aluno no aprendizado sistemático de sala de aula. Teria, assim, função parecida com os vídeos do YouTube no reforço do aprendizado. Assim, é um recurso a mais para se trabalhar naquilo que temos chamado de sala de aula aumentada, o ambiente de aprendizagem que vai além do espaço físico e sistemático de aprendizado. Ponto positivo.
“Como o GPT pode impactar positivamente o processo de ensino-aprendizagem?”
1. Gerando conteúdo de alta qualidade: o GPT pode ser usado para gerar conteúdo educacional de alta qualidade, como artigos, resumos, perguntas de múltipla escolha e mesmo aulas inteiras. Isso pode ajudar os professores a economizar tempo e esforço, enquanto fornecem aos alunos conteúdo relevante e atualizado;
2. Melhorando a personalização da aprendizagem: o GPT pode ser usado para personalizar a aprendizagem de acordo com as necessidades e habilidades individuais dos alunos. Isso pode ajudar os alunos a progredir em seu próprio ritmo e aumentar a eficácia da aprendizagem;
3. Gerando feedback automático: o GPT pode ser usado para gerar feedback automático para os alunos, o que pode ajudar os professores a fornecer orientação rápida e precisa;
4. Ajudando alunos com dificuldades de leitura ou escrita: o GPT pode ajudar os alunos com dificuldades de leitura ou escrita, gerando textos simplificados, crítica à produção do aluno (ele corrige produz e corrige códigos de programação, por exemplo), ou traduções;
5. Aumentar a eficiência de ensino: O GPT pode ser usado para aumentar a eficiência do ensino. Por exemplo, automatizando tarefas de ensino como a correção de provas e a elaboração de relatórios.
“Mas e os impactos negativos? É uma ferramenta e como tal pode ser utilizada de forma ruim. Como o GPT pode impactar negativamente o processo ensino-aprendizagem?”
O GPT pode impactar negativamente o processo ensino-aprendizagem de várias maneiras:
1. Encorajando a cópia: o GPT é capaz de gerar textos muito semelhantes aos textos de humanos, o que pode levar a cópia de conteúdo sem compreensão, crítica ou reflexão;
2. Reduzindo a motivação para pesquisar: o GPT pode fornecer respostas rápidas e precisas, o que pode levar a uma diminuição na motivação dos alunos para pesquisar e aprender por conta própria;
3. Desencorajando a criatividade: o GPT é capaz de gerar conteúdo com muita rapidez e precisão, o que pode desencorajar os alunos a serem criativos e a pensar de forma independente;
4. Falta de pensamento crítico: o GPT pode fornecer respostas precisas, mas sem questionar a veracidade ou relevância do conteúdo, o que pode levar a falta de pensamento crítico dos alunos. Lembrando: são bancos de dados e dados são produzidos por humanos.
É importante lembrar que o GPT é uma ferramenta e como qualquer ferramenta agregada ao ensino é preciso que seja utilizada de forma consciente e orientada para que os alunos possam se beneficiar do potencial sua utilização de forma crítica.
“Mas o que nós, professores, podemos fazer agora, agorinha, enquanto a gente aprende o que é isso e como incorporar a ferramenta em nossos processos metodológicos? E como avaliar? E o plágio?”
O primeiro movimento para os educadores é conhecer o que é um chat-bot IA e cartografar seu uso potencial, positivo e negativo, para o processo ensino-aprendizagem. Não me parece inteligente negar que sua existência e seu potencial de afetar o processo de ensino-aprendizagem.
Penso que a primeira reação, em urto prazo, vai ser a alteração do processo avaliativo. Deverá haver uma volta para avaliações presenciais, como forma de garantir a autoria da produção do aluno. Produções em grupo e fora da sala de aula serão evitadas por redução drástica de controle de plágio. É um movimento reativo de controle. Se eu, professor, não posso controlar a produção de cópia de textos, ainda mais com sua potencialidade aumentada por uma ferramenta de IA, vou tentar reduzir os danos controlando o ambiente de produção do aluno…
Uma opção mais inteligente, mas mais trabalhosa, em médio prazo, é incorporar a avaliação da interação do aluno com o GPT no processo de produção. Fazer o aluno trazer o relato dos caminhos que percorreu para que o GPT produzisse, sob sua demanda, o texto. Meta-aprendizagem.
Há muita coisa a se pensar sobre isso. Há questões éticas, teórico-metodológicas, de política de acessibilidade digital, de formação de professores… enfim, um grande desdobramento para os pensadores da educação e para os sujeitos da sala de aula.
Isso aqui é só um pequeno texto provocativo. Mas o fato é que mais uma vez educadores são demandados pela vida real para que repensem suas práticas, tarefa, convenhamos, necessária e diária. A meu ver, isso deve ser feito sem demonizar as novidades, mas as deglutindo antropofagicamente.
É o desafio.
Para experimentar o ChatGPT: https://openai.com/blog/chatgpt/
Sobre linguagem e Todes

A primeira-dama Janja, o ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e cerimonialistas usaram a palavra “todes” em cerimônias ao longo da primeira semana do governo Lula.
“Todes” não faz parte da norma-padrão da língua portuguesa. No entanto, vem sendo utilizada como uma palavra para se dirigir a pessoas não-binárias — que não se identificam exclusivamente com o gênero masculino ou com o gênero feminino.
A primeira coisa que devemos entender para compreender a questão é o conceito de língua que se sustenta para abordar a questão. Pode-se entender a língua como sinônimo de norma-padrão, a norma de investimento, a linguagem “oficial” que está nos livros, jornais, concursos, revistas, que segue a gramática e suas regras cristalizadas nos compêndios. Se entendemos língua assim, “todes” não cabe. Fim de papo.
Pode-se entender língua, no entanto, como algo histórico e dinâmico, com a oralidade sendo o reflexo mais preciso do seu tempo — a língua muda primeiro na oralidade para muito depois a mudança chegar ao uso na língua padrão. Entender língua assim abre para outras questões.
Uma dessas questões é a de que a língua serve para comunicar, mas que também serve para não comunicar; serve para incluir e para excluir. A língua é, portanto, política em sua natureza. Em sendo política, ela é arena de disputas ideológicas. Logo, o uso de “todes” e de outras palavras e locuções ligadas à chamada “linguagem neutra” — que de neutra não tem nada do ponto de vista ideológico —, é uma marcação, uma tomada de posição política em relação às questões de gênero. Por isso incomoda.
As questões de língua nunca são só questões de língua. São sempre questões sociais. O preconceito linguístico não é contra a língua, mas contra quem usa aquela língua. Vale para palavras, vale para sotaques, vale para grupos em geral. A sociolinguística estuda isso há anos.
“Sim, professor, mas é certo ou errado usar ‘todes’, afinal?”
A pergunta linguística não está na dicotomia certo/errado, mas no binômio adequação/inadequação. Vamos pensar língua como roupa. Todo lugar tem, convencionalmente, um dress code adequado. Uma cerimônia de casamento requer, historicamente cristalizados, certos tipos de roupas. Posso ir de tênis e jeans? Posso. Mas isso vai significar algo, vai gerar um efeito de sentido, desnaturalizando o naturalizado. Se alguém vai a um casamento vestido de tênis, jeans e uma camiseta estampada, o significado pode ser: “estou aqui, mas não concordo com alguma coisa disso e minha forma de me posicionar é desafiando o estabelecido.”
O mesmo raciocínio vale para o uso da língua. Se eu acho que esses pronomes ou termos não me representam e agridem a minha subjetividade, vou protestar não usando mais ou substituindo por outros que os desafiem e que me posicionem politicamente de forma bem clara.
“Mas isso em qualquer lugar e circunstância, professor?” Depende do quanto você está disposto a enfrentar o já estabelecido. Sempre há preços a pagar em lutas contra o establishment, inclusive o establishment linguístico.
Usar “todes” em cerimônias de um governo que se propõe inclusivo em relação aos grupos minorizados é perfeitamente adequado como sinalização linguística de um posicionamento político; bolsonaro — em letra minúscula, como marcação política — não usaria em seu governo excludente.
Usar “todes” na redação de um concurso que define a norma-padrão como regra — a não ser que o tema seja esse — não é adequado para quem quer passar no concurso. “Ah, mas eu quero. Foda-se!”. Ok. Legítimo. Mas vai pagar o preço da reprovação pelo posicionamento político. E ok.
O uso da língua nos posiciona politicamente. Uma luta por espaço político requer tomada de posição e embates, com preços a pagar por aquilo em que acreditamos. O grau de adequação depende de quão desafiadora é a questão: quanto mais desafiadora for, mais incômodo vai causar.
Mas é assim que se mudam as coisas. A língua é, sim, dinâmica, histórica, social. A norma-padrão tem seu lugar e é necessária. Não vamos demonizá-la também. Porém não é o único uso da língua. A oralidade a precede no uso. A escola precisa discutir o que estamos discutindo aqui.
A língua não é estática e acolhe as mudanças sociais, embora sempre o faça com resistência. É o lugar de embates ideológicos por excelência. Aborto/Interrupção de gravidez? Presidente/Presidenta? Golpe/Revolução? Milhares de exemplos de briga pelos sentidos. É só cavucar.
Se o inadequado na língua é o que lhe subjetiva, desafie pela língua o inadequado na prática social até ele virar socialmente adequado e até refletir na língua-padrão. O caminho é longo, a luta é árdua e vão resistir. Requer às vezes ir vestido de Batman para um casamento.
Este governo, ainda bem, deixa entrar o jeans e o cocar numa cerimônia social de posse de ministros. Este governo deixa entrar não só quem detém o poder econômico, mas todos, todas e todes também. Embora meu corretor ortográfico ainda sublinhe aqui ‘todes’ como erro.
“Mas o certo e o errado?” O certo é incluir quem está excluído. Socialmente e na linguagem. E na guerra linguística, como em qualquer guerra, é preciso pensar nas estratégias adequadas para vencer as batalhas.
Há o tempo e o lugar. E há o tempo e lugar. O vale-tudo todo tempo não é inteligente. É isso, por enquanto.
Fiquem bem. Todos, todas e todes.