amor desfeito

Acunpultura inversa

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A gente se amou muito. Mas um dia eu a machuquei. Ela, para se defender, colocou todos os meus defeitos e mais alguns num saco e jogou com força sobre o meu rosto. No fundo do saco, amassada e rota numa borra de mágoa, a parte bonita da nossa história.

O espelho de Narciso

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As relações são construções dinâmicas entre duas pessoas. Portanto, ambas levam para a relação sua história de vida, com suas questões e construções simbólicas. Uma relação, seja ela amor eros ou ágape, “vai dar certo” quando houver conciliação nesse encontro de demandas e o prazer gerado pelo encontro for maior do que a dor. Nunca há o encaixe perfeito porque as pessoas têm histórias diferentes. Sempre perdemos no varejo para ganhar no atacado. Relação é ajuste constante do GPS afetivo, é um eterno decidir entre o que deixo ir em nome do que quero que fique.

No entanto, quando um dos polos é narcisista, ele não só não cederá a parte que lhe cabe para suprir o outro na negociação, como também jamais reconhecerá que precisa deixar de olhar o espelho para criar laços reais e não apenas ilusórios, frágeis e passageiros. O outro, que não é o eu Narciso e perfeito, é quem sempre falha, é quem sempre deve, é o que sempre ameaça.

No amor eros, o desbalanço extremo – quando só um entrega – leva a amores pesados, tóxicos, abusivos. Apenas uma parte se alimenta, gafanhotando o parceiro, que fica por alguma razão que precisa ser evidenciada e elaborada. Mas, mesmo difícil, há a sempre a possibilidade do rompimento e do nunca mais. É preciso cortar os tubos que conectam oxigênio e o afeto que corre unilateralmente. Para relações abusivas não há meio-termo.

No amor ágape, o desbalanço também leva a sofrimento. Muitas vezes, é um sofrimento igualmente causado por um narcisismo pesado que coloca a pessoa no polo do egoísmo afetivo, em que não se importa de fato com o outro, somente consigo. Quando o laço é de família, por exemplo, a dor é mais perene porque o rompimento é mais difícil, mas é uma possibilidade real convocada pela saúde psíquica de quem tem sobre si o derramamento de sangue de uma ferida que não é sua. Sangrar nos outros é um recurso do narcisista, preocupado demais em se olhar no espelho para cuidar de coisas que acha que são desimportantes e secundárias.

Enfim, relações só valem a pena se houver ganha-ganha na negociação das diferenças. Se você não está disposto a negociar, se suas relações são frágeis e ilusórias, se seus laços se desfazem com o sopro, pode ser que você precise quebrar o espelho ou atravessá-lo, tal qual Alice, para perceber que de repente as coisas são o contrário do que se pensa, que o vilão não é outro, que há feridas a cuidar.

Pode ser que você esteja também na outra ponta, que busca inconscientemente essas relações frágeis e se apaixone pelos narcisos para purgar algo que rasgou lá atrás. Terapia é uma boa forma de identificar o que rompeu e interromper esse ciclo de dependência. Para o Narciso, terapia é sempre uma boa forma de quebrar o espelho. Embora isso seja de uma dor imensa, pois Narciso acha feio o que não é espelho e acha que, por isso, não precisa de ninguém. Ele se basta. E segue na sua antropofagia afetiva, passando por cima dos afetos das pessoas de quem deveria cuidar.

Over

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Sério: quando um relacionamento termina, ele tem de acabar. “Ain, mas a gente é amigo!”. Amigo é meu ovo! Terminou, acabou! “Ain, mas ele está sofrendo!”. Problema dele, dos amigos dele e da família dele. Não existe uma forma de reequilibrar a vida pós-término sem se distanciar. Corte tudo que alimenta a centelha de esperança, apague os nomes das agendas, limpe o Facebook, bloqueie todo mundo que vai fazer mal. Depois, lá na frente, quando encontrar no shopping um dia, diga “oi, tudo bem?”. Mas lá na frente. No começo, mude de calçada mesmo. Vai por mim. Se não a bagaça não sara. Como sarar se ficar cutucando a casquinha?

Andando em silêncio

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Para os que ainda amam e precisam lutar pelo amor.

Eu às vezes paro e pergunto à lua/Meu amor, por que você não vem/Eu preciso tanto ter você por perto/Pra esquecer de vez a solidão/As palavras vagam noite adentro/Não há noite não há nada, é só você/Não adianta o amor se derramar em prantos/Revelando um novo escândalo/Não servirá…Falta pouco tempo para um novo século/ E o que fizemos quase se perdeu/Da janela vejo quase tudo/À espera de um sorriso igual ao seu/Você é meu silêncio/Meu maior segredo/Tudo aquilo que escondo de mim/Pra não te ver chorar…

Há dias em que paramos para olhar o céu e se perguntar sobre a vida. Que rumos distintos daqueles rabiscados no guardanapo de papel tomaram aqueles nossos planos, não é?  Onde estávamos com a cabeça quando deixamos de lado aqueles sorrisos ainda impressos em nossas fotos daquele tempo que, que coisa!, eram tão bons? Cada descoberta, cada alegria, cada frio na barriga. O primeiro olhar, o beijo que nos laçou naquele sentimento que juramos para sempre. O chegar de mansinho com medo de pisar em falso… Que é deles?

Inevitável, no meio do corre-corre, colocar a vida em ponto-morto e perguntar à lua, que, aliás, anda linda, por que você não vem mais. Fico parado na esquina do meu pensamento desejando que tudo aquilo que aconteceu e que levou você de mim não passe de um pesadelo. Tudo vai sumir ao meu abrir de olhos no dia seguinte, dando aquele alívio leve que o acordar traz depois de uma noite ruim. Meu desejo… Sem você, engraçado, minhas noites têm sido ruins. Meu pensamento é meu lugar mais seguro, porque fora dele eu estou só. E eu preciso ter você por perto para esquecer a solidão. Você me enchia a vida. Hoje a presença da tua ausência me sufoca, me rouba os ares, me desconcentra. Vou perdendo o rumo porque você era a minha bússola, a minha nau, o meu marujo, o meu rum, o meu porto. Quando você foi, perdi o meu mapa, meu mar e minha terra firme. Quando deixei você ir, eu queimei meus navios.

Preencho, em vão, os buracos que você deixou com coisas mil. Alegrias chinesas que quebram ao menor choque com o real. Eu me engano no ritmo alucinante para fugir da alucinação da certeza da sua falta em mim. Mas agora estou gritando para o mundo: você me faz falta. Uma falta imensa. Doída. Lancinante. Era você e eu deixei ir. Fraquejei. Errei no cálculo. Qualquer lugar sem você é só mais um deserto. Eu, sedento de nós, na areia quente. Onde o oásis do seu corpo? Onde o remanso da sua companhia? Onde você? Queria de novo saber do teu cotidiano, que eu perdi…

Minha cabeça é invadida de palavras. Minhas, me questionando sobre minhas decisões;  suas, me trazendo momentos tão nossos, como nossa música, as nossas manias, os nossos apelidos secretos, a nossa história. Aquela noite especial? Aquela loucura de amor? Lembra? A lua olha e me ouve. E as palavras vagam noite a dentro. Perco o prumo, a referência, as vontades. Não há noite, não há nada. É só você.

O que que eu faço? Vou atrás de você? Você me quer ainda? Você pensa como eu penso? Você chora como eu choro? Porque eu choro com saudades da gente sem que ninguém saiba. Ninguém sabe. Só eu. – Puxa! Eu gostava tanto da gente junto… – Eu me fiz de forte  quando você foi. Hoje confesso: fiquei um trapo. Essas quatro paredes do meu quarto estão cada vez mais se fechando sobre mim. Você está em cada canto da casa, entrelaçada à minha sorte. Por que eu não disse as coisas que eu pensei em dizer? Podia até gritar como um dia gritei para que todos ouvissem. Que bobagem a minha achar que iam me considerar um fraco por voltar atrás sem mesmo ter ido! E quem tinha a ver com isso, senão eu e você? Como eu pude deixar você ir?… Agora, eu posso gritar, me derramar em prantos, fazer um escândalo… Não servirá. Você não está por perto.

Da janela eu vejo quase tudo. Fico à espera de um sorriso igual ao seu. Que não virá. Quero um cheiro igual ao seu. Que não existe. Querer você de volta é algo que não consigo falar, muito menos gritar, apesar do desejo estar alucinadamente frenético dentro do meu peito. Você é meu silêncio. Meu maior segredo. Ninguém sabe. Só eu. Vão passar anos, anos e ainda vou amar você.

Uma cigana me disse que você foi o amor da minha vida. Ela me disse também que o fim do mundo é a gente que faz. O fim do mundo é o horizonte. Sabe… eu preciso ser feliz. E eu só vou ser feliz com você. Hoje eu sei. Por você, para lhe ter a sorrir seu sorriso para mim, eu irei até o fim do mundo e se preciso for mais longe e mais longe. Preciso me despir das vergonhas, dos julgamentos, do medo. Preciso deixar para traz os temores, a ansiedade, a falsa alegria que engana a tristeza. Preciso me jogar na reconquista como os navegadores do Século XVI.

Existem provas vivas de que a gente se amou. Você sabe. Não, não há tempo certo para ser feliz. Todo o tempo é tempo de felicidade. A demora  só faz o caminho ficar mais pedregoso. Mas mesmo com uma pedra no meio do caminho, eu vou. Porque há sempre um tempo para quem se perdeu ter nova chance de se encontrar. Eu quero você de volta. Sem você, eu tenho andado em silêncio.

Que acabe o que terminou…

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“Relacionamentos terminam. É preciso também que acabem. É doloroso aceitar que alguém que fez parte total de nossos planos, de nossos sonhos, de nossa cama se foi. No entanto, sem deixar ir, nós é que não vamos a lugar nenhum. Não faz bem permanecer onde não pertencemos mais. O tempo passa e o lugar já não é mais o mesmo, as cores das paredes mudam, os cheiros dos espaços se transformam. Outros terão prioridades para sentar no sofá que era nosso, para beber o cafezinho na cozinha em que nós um dia tomamos o café da manhã seguinte à noite boa, da qual não somos mais protagonistas. Ser coadjuvante da história afetiva alheia é muito pouco para quem quer ser feliz. Mas só há protagonismo amoroso quando permitimos que os relacionamentos que terminam acabem e sigam o seu rumo. Seus mapas e roteiros não devem mais nos interessar. Precisamos desenhar os nossos mapas e roteiros, com nossa bússola, para navegar com a nossa nau no nosso rio, com nosso novo marujo, que está a nos esperar com a mão estendida na ponte de acesso.” SF

Alguém igual a você

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I heard that you’re settled down/That you found a girl and you’re married now/I heard that your dreams came true/Guess she gave you things, I didn’t give to you/Old friend, /Why are you so shy?/It ain’t like you to hold back/Or hide from the light/I hate to turn up out of the blue uninvited/But I couldn’t stay away, I couldn’t fight it/I hoped you’d see my face and that you’d be reminded/That for me, it isn’t over./Never mind, I’ll find someone like you/I wish nothing but the best for you, too/Don’t forget me, I beg, I remember you said/Sometimes it lasts in love/But sometimes it hurts instead /Sometimes it lasts in love/But sometimes it hurts instead, yeah/You’d know how the time flies/Only yesterday was the time of our lives/We were born and raised in a summery haze/Bound by the surprise of our glory days/I hate to turn up out of the blue uninvited/But I couldn’t stay away, I couldn’t fight it/I hoped you’d see my face and that you’d be reminded/That for me, it isn’t over yet/ Never mind, I’ll find someone like you/I wish nothing but the best for you, too/Don’t forget me, I beg, I remember you said/Sometimes it lasts in love/But sometimes it hurts instead/Sometimes it lasts in love/But sometimes it hurts instead, yeah/Nothing compares, no worries or cares/Regrets and mistakes they’re memories made/Who would have known how bitter-sweet this would taste/ Never mind, I’ll find someone like you/I wish nothing but the best for you, too/Don’t forget me, I beg, I remember you said/Sometimes it lasts in love/But sometimes it hurts instead/Sometimes it lasts in love/But sometimes it hurts instead, yeah…yeah

E aí? Soube que agora você é uma cara de família, deu uma estabilizada na vida… Show. Me contaram – sempre contam! –  que você encontrou uma pessoa e casou.  Disseram também que seus sonhos se realizaram. Legal. Legal que você achou alguém que lhe deu coisas que eu não pude dar. Legal mesmo. Super legal. Pois é, meu amigo… Posso te chamar de amigo, né?… Olha! É impressão minha ou você está meio sem jeito falando comigo? Como diz o Chico: “É desconcertante rever um grande amor”, né? Mas saiba, meu amigo, que essa timidez não combina com você. Não é seu esse lance de ficar retraído, de se esconder da luz. Não é aquela pessoa que eu conheci, com quem dividi sonhos, planos, cama…

Olha, eu sei que é muito estranho eu aparecer assim do nada, de repente, sem ser convidada. Odeio fazer isso. Quero deixar isso bem claro. Não me leve a mal, mas é que não deu pra ficar longe. Não tive força pra isso. A minha esperança é de que vendo o meu rosto você se lembre que pra mim nunca acabou, que eu nunca superei. Quer dizer… foi mal… deixa pra lá… um dia eu acho alguém que nem você… Olha só, lhe desejo tudo de bom, tá? Boa sorte! De verdadão! Mas, por favor, nunca me esqueça. Eu lembro que você me dizia que ou o amor faz as coisas se perpetuarem ou as coisas acabam desmoronando e acabando com a gente, que eram as opções lógicas, né? Eu lembro. Você falava isso… Você sempre foi muito razão.

Escuta, você também tem a impressão de que o tempo passa rápido também? Ainda ontem a gente estava junto, vivendo a melhor época de nossa vida. Parecia que não ia acabar nunca. Nosso amor nasceu  e foi como uma chuva de verão, rápida e forte. Torrencial. Nos inundou. O que mantinha a gente unido era a glória de cada momento daqueles tempos. Cada momento era a glória, né? Tempos bons, né, meu amigo? Pois é…

Olha… sério… foi mal aparecer assim, de repente. Mas não deu, cara. É mais forte do que eu ainda. O que eu queria mesmo era que você me olhasse e se visse no meu olhar, como antes… Assim, só por dizer, sabe… Esquece, esquece… Você tá bem… E eu sei que vou encontrar alguém assim como você, eu sei. Mas só mais uma coisa: sabia que nada é igual depois da gente? Perdi você ao perder nosso cotidiano. Nossos arrependimentos, nossos medos… tudo virou história. Nossa história. Minha, né? Você está aí,  casado, feliz… então… Quem diria que aquilo, tão doce, ia ficar tão amargo?… Mas ó… esquece, tá? Você tá bem e não quero atrapalhar. Eu vou encontrar alguém como você. Tem de ser exatamente igual a você. Senão não serve. Senão não serve… Eu ainda amo você…

Detalhes

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Não adianta nem tentar me esquecer/Durante muito tempo em sua vida eu vou viver…/Detalhes tão pequenos de nós dois/são coisas muito grandes pra esquecer/E a toda hora vão estar presents/Você vai ver…/Se um outro cabeludo/aparecer na sua rua e isto lhe trouxer saudades minhas a culpa é sua…/O ronco barulhento do seu carro/A velha calça desbotada ou coisa assim/ Imediatamente você vai lembrar de mim…/Eu sei que um outro deve estar falando ao seu ouvido palavras de amor como eu falei/Mas eu duvido, duvido que ele tenha tanto amor/e até os erros do meu português ruim/E nessa hora você vai lembrar de mim…/A noite envolvida no silêncio do seu quarto/Antes de dormir você procura o meu retrato/mas da moldura não sou eu quem lhe sorri/Mas você vê o meu sorriso mesmo assim/E tudo isso vai fazer você/lembrar de mim…/Se alguém tocar seu corpo como eu não diga nada/Não vá dizer meu nome sem querer à pessoa errada…/Pensando ter amor nesse momento desesperada você tenta até o fim/E até nesse momento você vai lembrar de mim…/Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada do tempo que transforma todo amor em quase nada/Mas “quase” também é mais um detalhe/Um grande amor não vai morrer assim/Por isso, de vez em quando você vai, vai lembrar de mim…/Não adianta nem tentar me esquecer/Durante muito, muito tempo em sua vida eu vou viver/Não, não adianta nem tentar me esquecer…

Um amor nunca acaba. Um verdadeiro amor se entranha na gente. Por mais que ele passe no tempo cronológico e os corpos deixem de se encaixar ligando as almas, um amor dos vera finca morada e por muito tempo insiste em viver ali, dentro de nós.

Passado um tempo, a cada esquina o dia a dia nos traz lembranças de um momento de uma vida a dois que se prometeu para sempre. No entanto, a promessa por alguma razão foi interrompida, abortada. Encerrou, mas não acabou.  Porque continuamos esbarrando em cheiros, cores, lugares e pessoas que são máquinas do tempo nos levando àquela época que hoje parece uma dimensão paralela, um tempo de cuja existência esquecemos quando nos pegamos distraídos com a vida. Pegos no susto da lembrança, exclamamos, surpresos: puxa, eu já amei essa pessoa!

Os detalhes tão pequenos de uma trama de afeto são coisas muito grandes para cair no vale do esquecimento. O tamanho de tudo quando se fala em amor não é físico, mas simbólico. Pode caber no espaço de um pingente ou numa aliança tosca de compromisso feita de tucumã. Há detalhes. Aquela história, aquele pôr-do-sol, aquela viagem. Aquela mania, aquela preferência, aquela implicância. O lugar na cama, a tampa da manteiga sempre aberta, a roupa sempre espalhada. Aquele perfume, aquela música, aquele boteco, aquele jeito de sentir prazer. Aquele defeito tão bonito. Como nós não podemos apagar o mundo que circunda aqueles que passaram em nossa vida, os detalhes sempre se farão presentes. Os detalhes moram do mundo, mas pertencem a enredo de dois.

No curso da vida surgirão outros amores. Esses amores novos nos amarão bem menos e pior do que o que se foi. Por isso, amores capengas nos farão lembrar do amor que passou justamente pela intensidade e pela qualidade de tudo o que vivemos e que não temos mais. Alguns outros amores, por outro lado, nos amarão bem mais e melhor do que o suspenso. Esses nos trarão à memória a tristeza da potencialidade não exercida daquele amor que acabou, que não foi tudo aquilo que poderia ter sido. Não tem jeito: a memória é um beco saída. Uma vez dentro, nos encurralamos contra o muro da lembrança. Só tem saudade quem viveu.

Se há uma coisa que constrange o coração é reconhecer em um novo amor a presença de um antigo. Um mesmo hábito, o mesmo jeito de sorrir, o mesmo perfume. A maneira de mexer no cabelo, os movimentos dos abraços ou do quadril… Ou falta de tudo isso. O novo faz assim, mas o antigo fazia assado. Ou cozido. Detalhes. Diz a frase que o diabo mora nos detalhes. Se assim é, o diabo e as lembranças são colegas de quarto. Nos detalhes, a essência do que se foi.

Sabe o que mais dói quando um amor entra em suspensão? É a perda dos detalhes do outro. Perde-se alguém quando se perde seu cotidiano, sua micro-história, suas tristezas e alegrias, que ficam incompartilháveis. Mais: outra pessoa está presente naquele dia a dia que era nosso por direito. Com certeza a vaca ou o babaca está lá com menos afinco do que nós. Outra pessoa está ouvindo frases que eram nossas, fazendo carinhos que deveriam estar vindo de nós e para nós. Humanos pretensiosos, temos a mais absoluta certeza de que o outro que está falando palavras de amor no ouvido que se foi não tem tanto amor como nós tínhamos. Apostamos um dedo polegar em que o impostor não fala do jeito que nós falávamos. É um ultraje esse outro viver a nossa vida, protagonizar os nossos atos, atuar em nossos enredos. Um canastrão qualquer agora encena esse papel que era nosso. Que triste espetáculo!

Detalhes. Arrumando as coisas, uma foto dentro de um livro. No livro, uma dedicatória feita em tempos outros para nós, que já não existimos mais. Como era verdadeira aquela dedicatória… Até a letra era caprichada. Há dúvidas se o cheiro de mofo é do livro ou dos sentidos contidos naquele pedaço de texto. Na foto, um sorriso que preenchia boa parte do nosso dia. Instante de um momento cujas circunstâncias passamos a recordar. Com detalhes. Mas tal qual em “De volta para o futuro”, a companhia da foto está esmaecida porque o futuro não aconteceu por um desvio de rota no passado.

Jogamos fora as fotos, apagamos e-mails e posts, colocamos uma outra foto no porta-retratos. De que adianta tudo isso se o cérebro continua mandando torpedos para o coração? Do que vale trocar as fotos se nas molduras onde há a presença de outra pessoa que lhe sorri, nós continuamos a ver outro sorriso mesmo assim? A lembrança é um espírito obsessor que nos acompanha no carro, no banho, na lua cheia que olhamos, pensando em cenas românticas.

Amores e suores. Delícias de enredos a dois. Se fosse um filme, seria um clássico. Se fosse um livro, seria um best-seller. Se fosse uma música, uma do Roberto. Mas foram-se as histórias. Saíram de cartaz. A vida seguiu e outros amores vieram para beijar nossa boca, lamber nossa carne, tocar nosso corpo. Evitamos falar qualquer coisa no frenesi do balé dançado nos lençóis com o receio apavorante e real de dizer o nome acostumado sem querer à pessoa errada. O breve segundo de consciência sobre quem está encaixado em nós nos tira a concentração. Desesperados, tentamos artifícios para ir até o fim. Recorremos aos olhos fechados para garantir a presença ausente naquele corpo que agora explora o nosso. Por instantes, fingimos acreditar em prazeres novos, nos iludindo em um hedonismo da carne, do sexo e da luxúria, sem sustança afetiva. O sexo é bom. Mas não é igual. É legítimo dublar corpos?

A longa estrada do tempo tem seus caprichos. Ela tende a transformar todo um amor imenso em quase nada, apagando os detalhes, deixando só os rascunhos da história em linhas muito gerais. Quase nada. Mas o quase é mais um detalhe também. É por esse fio de memória que um grande amor se oxigena na história de nossas vidas e não morre nunca. No máximo, fica cataléptico. Dorme para despertar ao seu capricho.

Não, não adianta tentar esquecer. Durante muito tempo os detalhes vão viver. Fato é que tentar apagar detalhes entranhados em nossa carne, em nossa alma, em nossa história é querer apagar uma parte de nós. Não se passa borracha em vidas. Memórias não são retornáveis. Nem devem ser. A antologia universal do amor guarda algumas páginas para os nossos amores. Amores que se foram, é verdade. Mas que deixaram em nós traços de si, nos tornando melhores e nos preparando para outro alguém que tecerá uma vida cheia de mais outros detalhes, feito um manto do Arlequim. É mais prudente guardar nossa caixa de detalhes dos que cruzaram nossas vidas e acarinhar cada souvenir deixado por quem passou do que fingir que não existiu histórias que nos trouxera até aqui. Ciclos precisam se fechar para que outros se abram. Mas não precisam sumir. Se o novo amor exige isso, livre-se dele. Ele não respeita seus pedaços. Ele não entende que nós somos o que nós temos sido. Que amores que passaram e de certa forma ficaram fizeram de nós as pessoas por quem ele se apaixonou.

Porque um amor nunca acaba. Um verdadeiro amor se entranha na gente. Por mais que ele passe no tempo cronológico e os corpos deixem de se encaixar ligando as almas, um amor dos vera finca morada dentro de nós e por muito tempo insiste em viver ali. Em detalhes.

Dias de chuva

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Sim, a gente se desentendeu…/Pense não ser bom fugir,/da paixão se proteger./Volta ao normal/Antes de nascer o sol/Se pintar tristeza, ouça o coração/Vi que ficou cinza a cor do azul/Mas por que chamar a dor/Antes de acontecer/Traga com o Sol/Paz aqui pro coração/Peça pra esse inverno chamar o verão/Bom demais sentir você por perto mesmo sem te ver/Estar feliz a todo tempo/Claro para nós que não há nada mais a se fazer/Fazer voltar os bons momentos/Eu já sei de cor a cor do azul/Passou o vendaval/Voltou a brilhar o Sol/Tudo é amor/Se a paixão nos fez chorar/Não passou de chuvas, chuvas de verão/Bom demais sentir você por perto mesmo sem te ver/Estar feliz a todo tempo/Claro para nós que não há nada mais a se fazer/Fazer voltar os bons momentos/Me perdoa por você chorar/Dias de chuva são/Véspera de tempo bom/Sigo com o Sol/Cai a chuva pelo chão/Deixo a tristeza e ouço o coração/Siga com o Sol/Cai a chuva pelo chão/Deixa a tristeza e ouça o coração.

Sim, a gente se desentendeu.  Mas quem não? Ah, eu não compraria um carro usado de um casal que diz que nunca brigou. Um amor idealizado, sem brigas, sem rusgas, é um amor que não range suas diferenças, fundamental para fazer a engrenagem da vida a dois rolar, tecendo a rede de memória que alicerça a história da relação. Buscar uma assepsia impossível na relação acaba com o sistema imunológico do amor. É preciso por os pés descalços na lama para pisar firme na grama.

Nossa briga é desvio, não caminho. Por isso, me ouça. Pense que não é uma boa fugir de nós. Eu sei, parece que a distância ajuda na hora da carne aberta pela navalha da palavra mal dita, pela lâmina do erro maldito. Todas as pessoas erram, mas só as que são grandes pedem desculpas olhando nos olhos. Olhe nos meus olhos. Quero-me grande para você, ainda que agora seja liliputiano. Quero pedir desculpas sinceras. Se veja no meu olhar sincero e me permita que eu me veja no seu. Foi assim que nos entendemos na primeira vez, lembra? Ficar longe, sem querer conversar, é se proteger da paixão.

Precisamos – eu, você, nós – voltar ao normal antes do nascer do sol. Está escrito nos estatutos do amor que ninguém que ama deve dormir sem dar um beijo de boa-noite para fechar o dia, tenha sido ele bom ou ruim. O beijo de boa-noite noite é Deus rendendo nossos anjos da guarda. Permita que Deus entre. Quem tem um lastro, uma história, como nós, pode apostar no coração como avalista quando pintar a tristeza. É preciso ouvir o coração. Como um velho sábio das montanhas do Tibet, ele sussurrará no ouvido de sua alma o que melhor há de fazer.

Na cromotipia da vida, às vezes a cor do azul fica cinza. Nublam o celeste as tristezas gris. Um erro, um deslize, um momento em falso pode alterar a meteorologia de nosso afeto. Mas nuvens, chuva, raios e trovoadas estão ali por instantes. O normal é a cor azul e sua paz infinita.  Mas por que chamar a dor antes de acontecer? Há um ponto tênue de controle entre o silêncio regulador e a palavra descarrilada. Um ínfimo hesitar ou um micromovimento que altera tudo o que somos, tudo o que temos, tudo o que podemos vir a ser. Não nos abortemos por migalhas.

Não esmaeça por minha causa. Não se esvazie do seu gás por causa de uma alfinetada minha. Traga com o sol paz aqui para o coração. Sua luz se expande ao tocar em meus pontos escuros. E vice-versa. Porque somos diferentes. Precisamos da diferença para, dividindo a vida, somar os caminhos e multiplicar as possibilidades. Ah, “navegar é preciso, mas viver não é preciso”, como precisa é a aritmética. Olhe nos meus olhos… Invento joguinhos de palavras piegas e cito o  poeta para fazer uma ponte entre nossos olhares, a única forma de cruzar esse Rio Amazonas que nos separa.

Um inverno. De repente um gelo inesperado. Um inferno. Andávamos há pouco descalços na areia da praia, sob o calor do sol e das nossas mãos dadas. Um erro, um deslize, um passo em falso… Mas e nós? Olha, peça para esse inverno chamar o verão! Tem aquela praia que desenhamos no guardanapo, com um coqueiro e uma casinha esperando por nós, lembra? Lembra?

É bom demais sentir você por perto, mesmo sem te ver. O amor é fisicamente incoerente: o vazio da ausência não cabe dentro da gente. Transborda. […] Ei, eu estou desesperado com teu silêncio. […] Queria estar feliz a todo tempo, como antes. Claro para nós que não há nada mais a se fazer: só fazer voltar os bons momentos. […]

Um sorriso.

Você está me olhando nos olhos…

Eu já sei de cor a cor do azul. Passou o vendaval e voltou a brilhar o Sol. Tudo é amor. Se a paixão nos fez chorar, não passou de chuvas, chuvas de verão. As chuvas alimentam a vida à custa da falta de sol momentânea. Que nossas chuvas sejam nutrientes de nosso ecossistema e não deslizadoras das montanhas de nossas geografias. Bom demais sentir você por perto. Bom demais sentir o teu cheiro. Bom demais, ponto. Uma vida, uma história, uma trilha sonora, nossos detalhes, nossas manias: recuperamos tudo de uma quase perda total. Que buraco ficaria na antologia universal do amor!

Me perdoa por você chorar? É que dias de chuva são véspera de um tempo bom… Comecemos novamente o nosso tempo bom. Eu sigo com o sol, cai a chuva pelo chão e eu deixo a tristeza e ouço o coração. Siga você também com o sol, pois cai a chuva pelo chão. Deixe sua tristeza e ouça o coração…

Há um ponto tênue de controle entre o silêncio regulador e a palavra descarrilada. Um ínfimo hesitar ou um micromovimento que altera tudo o que somos, tudo o que temos, tudo o que podemos vir a ser. Dias de chuva sempre vêm. Mas o sol surge indefectível. Um beijo, meu bem. Boa noite.

Canção Pra Quando Você Voltar

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Quando o sol de cada dia entrar,/chamando por você,/querendo te acordar…/Vai ter sempre alguém pra receber,/fazer o seu jantar/dormir no seu sofá./Alguém pra olhar a casa/e alguém que regue o seu jardim/até você voltar./E como é normal acontecer,/se num entardecer a dor te visitar/vai ter sempre alguém pra socorrer,/fazer o seu jantar/dormir no seu sofá./Enquanto a noite passa por mim,/eu rego o seu jardim/Você já vai voltar…/Om mani padme hum…

Para quem ainda espera.

Uma das sensações mais lancinantes do ser humano é ir deitar à noite de um dia em que a pessoa amada se foi. Até perceber que a outra chave de si foi deixada em cima do criado-mudo demora. Por um tempo, quem foi deixado apenas com seu amor já destinado e personalizado sem ter mais a quem destiná-lo engana a si próprio, esperando a volta de alguém que é protagonista do enredo a dois de uma peça que já não está mais em cartaz. Que isso não aconteça comigo. Dei para ter pena dessa gente porque estou com tempo para pensar. Você me deixou tempo ao precisar ir por uns tempos, o que eu compreendo, claro.

Todo dia há o sol de cada dia entra rasgando a janela, chamando por você, querendo lhe acordar. O seu rasgo de luz dilacera o vácuo do quarto e o meu peito esperançoso e o seu chamado ecoa um meu pretenso grito abafado que, dizem os que desistem fácil, não quer se entregar, dar o braço a torcer. Na sua tarefa de despertar, a luz do sol em vão se esgueira entre as frestas da persiana em busca dos seus olhos, olhos de quem sempre ocupou aquela metade da cama que hoje queda arrumada. Olhos de quem sempre ocupou aquele todo de mim e que, puxa, deu uma saída, precisou de um tempo, claro. Todo mundo precisa, lógico. Mas que vai voltar, óbvio.

A certeza da sua volta preenche a misericórdia penosa da inaceitável probabilidade de uma ida sem retorno, que é um não-sentido, uma não-possibilidade. Imagina… Eu recebo o sol, sempre estarei lá para recebê-lo por você. Você deu uma saída, mas retorna, eu digo. Peço para aguardar. Como eu aguardo. Eu faço o jantar que serve dois e ponho a mesa. Guardo parte para esquentar depois, dobro a toalha, recolho talheres. Porque algo aconteceu e você não chegou. Um imprevisto, lógico. Caio no sono no sofá estrategicamente posto em frente à porta que, cedo ou tarde, óbvio, vai se abrir e me fazer entrar a pessoa que já está dentro de mim: você.

Os dias passam e não arredo o pé da casa. Alguém tem de olhar a casa. O resto do mundo pode esperar. Rego a duas mãos o jardim plantado a quatro. As rosas, estranho, tentam me dizer algo. Mas que bobagem, as rosas não falam. Simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de você. Cartola canta o seu jardim e a minha espera. Eu olho para o céu e, veja você, o arco-íris já mudou de cor. Uma rosa nunca mais desabrochou. Todas as músicas me ninam a espera. Mas rego, cuido, trato do seu jardim. Vou ficar aqui até você chegar…

Eu apenas me preocupo com a demora. E se tiver acontecido algo? E se você se perdeu no caminho de casa? E se estiver sentindo a mesma dor causada pela presença ostensiva da nossa ausência? Estou a postos. Para cuidar, dar beijinho, fazer carinho para passar. Depois fazer o jantar com a comida favorita e dormir com a cabeça no seu colo no sofá. Já já você estará de volta, por certo.

A noite vem e o sol vai. Continuo regando o jardim. É inconcebível descuidar das flores coloridas e cheirosas, que aromatizaram cada dia e cada noite, soprando seus aromas por sobre nossos corpos, exaustos de tanto se amar. É até você voltar. Você já vai voltar.

O tempo em silêncio me leva à meditação. Canto, enquanto rego o jardim, faço seu jantar ou deito no seu sofá, um mantra dos monges: Om mani padme hum… Om fecha a porta para o sofrimento do orgulho. Imagina… Ma fecha a porta para o sofrimento que vem da inveja. Inveja de quê? Eu que lhe tenho. Ninguém mais, né? Ni fecha a porta para o sofrimento dos humanos, que é o nascimento, a doença, a velhice e a morte, um sofrimento que vem do desejo. E eu lhe desejo. Mas, confesso, a palavra morte me incomoda. Não sei a razão. Pad fecha a porta para o sofrimento que vem da ignorância. E como tem gente que não quer ver as coisas… Me fecha a porta para o sofrimento da fome e o da sede, um sofrimento vem da ganância. Eu não tenho ganas, a não ser de você. Assim como a fome de te comer e a sede de tomar em mim. E Hum fecha a porta para o sofrimento que vem da raiva ou do ódio. Mas eu amo você. Nunca vou odiar você…

Amanheceu. O sol entrou pela fresta, querendo lhe acordar, chamando por você… Eu vou recebê-lo. Eu sempre vou estar aqui. Até você voltar. Você já vai voltar…

A perda

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QUE TRISTEZA. QUE VAZIO. QUE DOR. A perda é irreparável.  Foi presente da minha mãe. Ninguém faz isso com quem está exilado de sua terra… Cortar os vínculos simbólicos é uma violência injustificada, crime inafiançável, crime ecológico contra a natureza dos afetos à terra natal. Estou vivendo meu holocausto particular, pediram a cassação da minha alegria…

Era só minha. Tão minha. Estava ali, todos os dias, companheira inabalável da rotina. Umas  vezes mais doída, outras menos, mas sempre ali. Nunca se negou a dividir comigo meu prazer, minha dor. Mas com ela a dor era prazerosa, numa contradição justificável, numa antítese permitida. Antes dela tinha tentado algo parecido, campineiro mesmo, mas não deu. Ela era como Tom Jobim, Patrícia Poeta e banho de cachoeira. Ou como banho de cachoeira com a Patrícia Poeta ouvindo Tom Jobim. Não tem igual. Ela é só ela. Nem clonando. E foi minha mãe que me deu… Puxa, que dor… irreparável perda.

Ficava contando as horas, olhando refolhadamente o relógio na sala de aula, esperando o momento de vê-la, de reencontrá-la.  Uma ansiedade de adolescente que vislumbra os primeiros frios da paixão na barriga. Um desejo de tocar sua pele quente, sensações rasgantes e inigualáveis. Só ela fazia isso. Só ela. O pensamento exclusivamente nela me desconcentrava do meu propósito de ter vindo aqui: estudar linguagem, língua. Porque pensar na língua era pensar nela. Não tinha jeito. Ela, língua… ideias…

Hoje cheguei e como sempre fui ao seu encontro na certeza de seu toque quente. Ledo e Ivo engano, como diz o Cony. Só silêncio. Só vazio. Alguma coisa estava errada. Pressenti a angústia por vir como se pressente o pai da namorada chegando de sorrate, namorada cujo seio estamos sofregamente a acariciar o cume. Aquela sensação instintiva de um algo terrível por vir. Olhei. Nada. Tateei. Nem sinal. Onde estaria minha companheira de pecado capital? Que fim levara? Revirei a casa toda. Necas de pitibiriba….

Efigênia!! Só a Efigênia, a eficiente e genial senhora (daí seu nome, creio) que trabalha aqui em casa, poderia me dar pista de seu paradeiro. Afinal, Efigênia, uma alagoana que veio fazer São Paulo, passara o dia todo em casa. Na minha casa. Eu estudando, com o ansiado reencontro com minha criança ressignificando as teorias de aquisição de linguagem, e Efigênia no batente, defendendo o seu, entre panelas e louças. Ela haveria de saber. “Claro!”, sorri por dentro, como diria meu primo Silvio. Mas Efigênia estava em casa àquela altura. Na sua casa. Foi embora antes de eu chegar. Tinha deixado a chave com Chaplin, o porteiro do bigodinho. Dez e meia da noite… será tarde? Incomodarei se ligar? Fiz várias perguntas que sabia no fundo serem retóricas. Claro que ligaria! Tarde nada! Tinha que saber, tinha que saber…

De repente o medo apoderou-se de mim. Uma voz ao fundo, em eco, sussurrava: “E se foi ela, a Efigênia?” Parei a ligação no terceiro número. Enfrento essa mórbida possibilidade? Ligo para aquela que poderia ser a algoz da minha loura, a razão do meu desespero, a Dona Regina do meu painel do senado? Tenho que ligar… sem notícias corria o risco de perder minha própria identidade, virar um sem-identidade. Um rosto na multidão paulista. Talvez até alguns erres retroflexos se apoderariam de minha língua… Língua! Lá volta o pensamento nela. Não! Sou Amazonense, da terra dos barés e dos igarapés. Preciso da minha cabocla. Anoiteceu e eu preciso só saber: onde está você? Já estava começando a cantar Roberto Carlos com a letra trocada, tal meu estado de confusão mental. Enquanto isso pensava se ligava ou não para a Efigênia.

Pensei em recorrer a molibdomancia, mas daria muito trabalho ir ao Aurélio para saber que diabos era isso. Desisiti. “Vou ligar!”, gritei valente. Mas antes de ligar, desci ao térreo do meu prédio. Fui procurar lá embaixo algum vestígio de seu cadáver, algum resto mortal, alguma pista. Pensei em Santa Rita de Cássia. Mas talvez Santa Rita, a das causas impossíveis, não compreendesse. Ela era de Cássia e Cássia fica na Itália e não no Amazonas. Então meti a mão na massa e procurei e chafurdei e futuquei em busca de seu cadáver. Nada. “Nonada”, ecoei na cabeça à moda de Guimarães Rosa.

Liguei. Criei coragem e liguei. “Efigênia, você viu… você sabe…?” Fez-se um silêncio de um segundo infinito e nele passou minha vida, num flash, como nos relatos de experiências de quase-morte. E foi como um choque de 1000 kilowatts! (E ainda por cima, com esse consumo,  vou ter que pagar a sobretaxa do apagão do irresponsável FHC).

Ela sabia. Foi ela. E confessou com uma frieza que atribuí ao clima para amenizar a barbaridade: “Botei fora, seu Sérgio. Mas se o senhor quiser arranjo outra”. Não, Efigênia, não… não é simples assim… é de amor que falamos. E amor para mim não é descartável. É um processo. Já sou um tio Sukita para a galera do “ficar”. Arranjar outra… em São Paulo?! Como? Ela é insubstituível, Efigênia… mesmo sabendo que em São Paulo tem uma ou outra até considerável numa emergência. Mas não dá, não dá… estou abatido, amuado, mofino. Um goleiro na hora do gol aos 47 do segundo tempo numa final de copa do mundo contra a Argentina,  revisitando mais dramaticamente Belchior.

Como, Efigênia, como?! Por quê? Pergunto, sem vislumbrar resposta que me conforte ou anime… Cadê minha mulher, o meu amor, preciso do teu cafuné…. Como, Efigênia de Deus, como é que você pôde jogar fora assim o saco de pimenta murupi que minha mãe trouxe pra mim…