Amor
Acunpultura inversa
A gente se amou muito. Mas um dia eu a machuquei. Ela, para se defender, colocou todos os meus defeitos e mais alguns num saco e jogou com força sobre o meu rosto. No fundo do saco, amassada e rota numa borra de mágoa, a parte bonita da nossa história.

Amar na ausência
Há pessoas que amamos e cuja distância física nos machuca. Por isso, penso que momentos com aqueles a quem amamos, que trazemos dentro de nós – ainda que o dia a dia deles nos faça esquecer – precisam ser aproveitados ao máximo. Se você não pode ficar junto de quem você ama durante um ano, fique um mês. Se não der um mês, fique uma semana. Se não der uma semana, fique um dia. Se não der um dia, fique um minuto. Mas fique intenso, olhando nos olhos, ouvindo, segurando a mão. Viva a plenitude da presença. Porque a ausência de quem a gente ama é a regra do mundo. E aprender a amar na ausência leva tempo. E dói muito.
O espelho de Narciso
As relações são construções dinâmicas entre duas pessoas. Portanto, ambas levam para a relação sua história de vida, com suas questões e construções simbólicas. Uma relação, seja ela amor eros ou ágape, “vai dar certo” quando houver conciliação nesse encontro de demandas e o prazer gerado pelo encontro for maior do que a dor. Nunca há o encaixe perfeito porque as pessoas têm histórias diferentes. Sempre perdemos no varejo para ganhar no atacado. Relação é ajuste constante do GPS afetivo, é um eterno decidir entre o que deixo ir em nome do que quero que fique.
No entanto, quando um dos polos é narcisista, ele não só não cederá a parte que lhe cabe para suprir o outro na negociação, como também jamais reconhecerá que precisa deixar de olhar o espelho para criar laços reais e não apenas ilusórios, frágeis e passageiros. O outro, que não é o eu Narciso e perfeito, é quem sempre falha, é quem sempre deve, é o que sempre ameaça.
No amor eros, o desbalanço extremo – quando só um entrega – leva a amores pesados, tóxicos, abusivos. Apenas uma parte se alimenta, gafanhotando o parceiro, que fica por alguma razão que precisa ser evidenciada e elaborada. Mas, mesmo difícil, há a sempre a possibilidade do rompimento e do nunca mais. É preciso cortar os tubos que conectam oxigênio e o afeto que corre unilateralmente. Para relações abusivas não há meio-termo.
No amor ágape, o desbalanço também leva a sofrimento. Muitas vezes, é um sofrimento igualmente causado por um narcisismo pesado que coloca a pessoa no polo do egoísmo afetivo, em que não se importa de fato com o outro, somente consigo. Quando o laço é de família, por exemplo, a dor é mais perene porque o rompimento é mais difícil, mas é uma possibilidade real convocada pela saúde psíquica de quem tem sobre si o derramamento de sangue de uma ferida que não é sua. Sangrar nos outros é um recurso do narcisista, preocupado demais em se olhar no espelho para cuidar de coisas que acha que são desimportantes e secundárias.
Enfim, relações só valem a pena se houver ganha-ganha na negociação das diferenças. Se você não está disposto a negociar, se suas relações são frágeis e ilusórias, se seus laços se desfazem com o sopro, pode ser que você precise quebrar o espelho ou atravessá-lo, tal qual Alice, para perceber que de repente as coisas são o contrário do que se pensa, que o vilão não é outro, que há feridas a cuidar.
Pode ser que você esteja também na outra ponta, que busca inconscientemente essas relações frágeis e se apaixone pelos narcisos para purgar algo que rasgou lá atrás. Terapia é uma boa forma de identificar o que rompeu e interromper esse ciclo de dependência. Para o Narciso, terapia é sempre uma boa forma de quebrar o espelho. Embora isso seja de uma dor imensa, pois Narciso acha feio o que não é espelho e acha que, por isso, não precisa de ninguém. Ele se basta. E segue na sua antropofagia afetiva, passando por cima dos afetos das pessoas de quem deveria cuidar.

Blackbird: da delicadeza das relações

Eu sempre amei música. Até hoje a música tem um espaço fundamental no tecido da minha vida afetiva. É uma linha essencial no meu linho. Eu conto minha vida pelas músicas que canto. Ouço uma música e sei exatamente a época em que tocava porque ela me tocou à época em que era tocada. Pequenos filmetes desfilam em minha mente quando são as canções que nos põem para tocar.
Quando eu tinha meus quinze, dezesseis anos, todo sábado à tarde eu transformava o meu quarto em meu templo. Minha oração, ligação com o transcendental, brotava do som que eu ouvia dos discos-bolacha que eu punha para escutar no meu três-em-um Gradiente. Quando a agulha descia sobre a faixa escolhida e começava o seu chiado, eu fechava os olhos e entrava em contato com dimensões cuja existência só viria a descobrir mais de trinta anos depois, lendo os livros de Patrick Drouot.
Queen, The Mammas and the Pappas, Pink Floyd, mas, sobretudo, Beatles. O piano de Let it Be, o crescendo alucinante de A Day in the Life, a declaração de amor crua, direta e visceral em I Want You (She´s so Heavy) e o desespero de apaixonado e enfeitiçado por algo nela, bailando ao som do solo da guitarra de George Harrison em Something. Cada canção dos Beatles é uma história, um sentimento, uma sensação. É vida. Eu era um menino magrelo, desengonçado, ignorado pelas mulheres, mais interessadas nos Menudos, nos garotões sarados, tatuados e bonitos da escola, que sabiam dançar. Ou nos caras que dirigiam um Escort XR-3. O ignorado aqui, let it be, escrevia boa parte de sua existência, recluso no seu universo particular, pelas músicas de Lennon e McCartney. Eu era um estranho no mundo dos afetos. Só tinha a oferecer uns textos mal escritos e nada mais. No entanto, eu era um estranho que, orgulhoso, tinha todos os discos do Fab4. E eu ouvia todos os discos. E eu sabia, como sei até hoje, todas as letras e suas histórias. Eu era o fã que lia os livros biográficos dos caras. Minha parede do quarto tinha um quadro com a foto do John. Eu acordava e dormia olhando aquele sujeito que me ensinou que, puta merda, pelo amor vale tudo. Até deixar os Beatles.
No meu mundinho fechado, mas incrível, eu aprendi a ler as pessoas pelas músicas. Eu compreendi que tudo tem significado; eu entendi que significado é história e, por ser história, todo sentido é dinâmico e pode mudar. Dei-me conta de que são os significados que damos ao mundo que regem nossa existência. Todo esse aprendizado lá de trás, vejam que coisa!, me levou a estudar linguagem, discurso e me trouxe ao encontro da psicologia no ocaso da vida. Estava escrito? Maktub mesmo? Whatever…
Voltando ao meu quarto em 1983, eu me vejo ouvindo a guitarra seca de Blackbird. Paul McCartney fez essa música pensando nos conflitos raciais no Alabama e no Mississipi em 1968, ano em que nasci. “Bird” é uma gíria britânica para “girl”. Blackbird faz referência às mulheres negras que sofriam o que sofriam então. É uma música política. Sempre adorei Blackbird. É o tipo de música que fica excelente em qualquer versão. Mas, como sempre dei meus sentidos às músicas, em um exercício muito particular, com Blackbird não foi diferente.
Blackbird singing in the dead of night/Take these broken wings and learn to fly/All your life you were only waiting for this moment to arise/Blackbird singing in the dead of night/ Take these sunken eyes and learn to see/All your life you were only waiting for this moment to be free/Blackbird fly, blackbird fly/Into the light of the dark black night.
Para mim, essa canção fala de vida afetiva, de história, do que a psicanálise lacaniana chama de Real. Quem de nós nunca foi um pássaro que cantou na solidão da noite? Quem de nós nunca viveu o inferno de uma relação em que se apostou a vida e que falhou? Sim, porque a vida vem e não pede licença. Às vezes atropela. Quebra as asas. Pela vocação da felicidade, as pessoas de repente pegam essas asas quebradas e se lançam, ainda que relutantes, a reaprender a voar. Só esperam, arredias, o momento se oferecer. Há um momento certo para amar? Enfim, aguardam a hora em que a luz reparadora entra pela fresta da ferida, pelo rasgo da existência.
Pássaros cantando na solidão da noite – quem nunca? Quantas vezes nos vimos tomando os olhos encovados pelas olheiras e tivemos de reaprender a olhar o que a vida borrou e transformou em experiência de dor? Rever o borrado pela dor dá um trabalho filho da puta. Corre sangue até. Mas sempre chega o momento de se libertar do que acorrentou, do que passou e fez mal. Que metáfora linda para se falar da necessidade de se continuar vivendo depois que a vida aprontou, bateu, derrubou! É a função da arte, não é? Beatles, não é? Todos, absolutamente, todos somos blackbirds, enfim. Enfim.
Daí o título deste texto. Blackbird sempre me faz pensar na delicadeza das relações, sabe? Entende? Toda relação é especial. Toda relação merece ser tratada como tal. Na minha cabeça, relação afetiva só existe no todo, corpo e alma. Foi essa a dinâmica que me trouxe até aqui nesses 50 anos. É geracional. É claro que, dã, eu não vivo no século 16 para achar que não há pessoas que veem no sexo sem conexão afetiva uma opção legítima. Ok. Mas não eu. Legitimamente também, isso me é pouco. Por isso que sempre fui buscar a alma quando foi necessário, feito Robin Williams, que vai no inferno em “Amor além da vida”.
Agora, ninguém pode esquecer que se somos, o outro também é um blackbird. A ninguém, que diz amar, é dada a opção de ignorar que o outro quebrou suas asas no caminho, que sentiu dores, que tem sua história. A ninguém é garantido o direito do descuido de ignorar que se há olheiras é porque houve noites insones. Se há amor, se há carinho, há de haver cuidado. Querer bem passa pelo momento, inclusive, de se afastar quando o outro precisa respirar. A cena é linda: tomar delicadamente nas mãos o pássaro frágil que é alma alheia e abrir as mãos para deixar o pássaro reaprender a voar depois do cuidado. Ninguém ama o outro a não ser o tendo em liberdade plena. Às vezes, blackbird, é preciso voar para ficar. Às vezes é preciso compreender que ficar vendo as rodas passarem é uma opção legítima.
Toda relação é delicada. Delicada não só no sentido de merecer cuidado, mas também no sentido de ser cuidadosamente bonita. Cuidado. A gente precisa cuidar do outro. A gente precisa entender que todo encontro afetivo é um encontro de histórias. Qual é a sua asa quebrada? Como quebrou? A minha é essa e foi assim, sabe? Por que das suas olheiras profundas? O que as causou? As minhas vêm do meu choro e meu choro vem daqui, ó, deixa eu te contar, eu quero que você saiba. Amar é mais do que saber só as coisas boas. Arriscaria dizer que ama mesmo quem conhece os porquês das cicatrizes do outro e os acolhe no processo de (re)construção afetiva como elemento que dá liga à intimidade. Amar é, sobretudo, saber escutar. É conversar. É deixar claro. É não surpreender negativamente.
É. A terceira faixa do lado A de “A hard day´s night” é If I Fell. Há um pedido tão delicado de cuidado em If I Fell. Enquanto escrevia só me veio à mente sua melodia.
If I fell in love with you/Would you promise to be true/And help me understand/’Cause I’ve been in love before/And I found that love was more/Than just holding hands./If I give my heart to you/I must be sure from the very start that you would love me more than her/ If I trust in you, oh please, don’t run and hide/If I love you too, oh please/Don’t hurt my pride like her/ ‘Cause I couldn’t stand the pain/And I would be sad if our new love was in vain…
Amar é, definitivamente, muito mais do que andar de mãos dadas. Amar é voar em par. Às vezes no escuro. Às vezes à noite. Às vezes com as asas quebradas, blackbird. Com as asas quebradas.
Não tenho mais meu o quarto com o quadro de John. Não tenho mais os LPs. Mas ainda posso ver as rodas passarem. Ainda tenho os Beatles. Vou ouvir Beatles.
A escolha de Sofia
O filme é de 1982. Em 1947, Stingo (Peter MacNicol), um jovem aspirante a escritor vindo do sul, vai morar no Brooklyn na casa de Yetta Zimmerman (Rita Karin), que alugava quartos. Lá conhece Sofia Zawistowska (Meryl Streep), sua vizinha do andar de cima, que é polonesa e fora prisioneira em um campo de concentração e Nathan Landau (Kevin Kline), seu namorado, um carismático judeu dono de um temperamento totalmente instável. Em pouco tempo tornam-se amigos, sendo que Stingo não tem a menor ideia dos segredos que Sofia esconde. Dentre esses segredos está a história de seu dilema. Seu dilema surge ao ser forçada por um soldado nazista a escolher um de seus dois filhos para ser morto. Se ela se recusasse a escolher um, ambos seriam mortos. Meryl Streep, como sempre, deu um show e ganhou o Oscar. E mais não conto porque você tem de ir lá assistir ao filme.
Diferentemente da escolha da Sofia de Meryl, de uma brutalidade inimaginável para qualquer pai ou mãe, eu queria falar aqui de outra escolha. A escolha que tantas mães e pais fazem pela vida. A escolha pelo acolhimento de uma vida que chega pela adoção.
Adotar é um ato de coragem, de grandeza e de amor. Requer coragem acolher como seu um filho que não foi gerado biologicamente nas suas entranhas, que já vem semipronto com sua breve experiência de vida, com porções de sua personalidade já marcadas por um período da infância sobre o qual se sabe pouco ou nada. Requer coragem porque foge à ordem natural da procriação biológica. Essa coragem, no entanto, vem acompanhada de uma grandeza imensa. Porque tudo isso vira detalhe em função do acolhimento, tudo o de antes se esvai ao tomar a criança no colo pela primeira vez, ao ver seu sorriso iluminando magicamente a nossa alma. E isso é amor, em uma das suas formas mais bonitas.
Nosso mundo é plural e, por isso, as verdades são plurais também. Há pessoas que acham que só se deve ter relações sexuais para procriar. Outros veem no sexo de um casal, além da necessidade fisiológica da espécie, um momento sublime de estreitamento de laços afetivos, de cumplicidade; há quem só considere como possibilidade o parto normal. Há quem entenda que o parto cesárea é um recurso da medicina, que deve ser usado por uma série de razões, como evitar que a mãe sofra por horas no esforço do parto normal, sofrimento esse imediatamente rebatido e ressignificado como privilégio pelo discurso dos naturalistas; há quem sustente que filho é apenas uma categoria biológica. E há os que sabem que filho é uma categoria simbólica. Mais do que isso: um sujeito que vai se fazendo pelo afeto. Para uns, nasce-se filho. Para outros, faz-se filho.
Também tenho meus sentidos sobre família, filho, irmãos, pais, adoação. O biológico é importante, mas, para mim, muito mais importante é a construção simbólica que alicerça as relações. Há irmãos que vieram de diferentes barrigas que são mais irmãos que Yaqub e Omar, que vieram do mesmo óvulo. Há pais e mães impedidos biologicamente de ter seus filhos que são mais pais e mais mães do que muitos pais e mães que põem crianças no mundo e se eximem do exercício dos papéis simbólicos de pai e mãe, tão fundamentais para o sujeito, absolutamente estruturantes seja lá qual for a teoria da personalidade que você escolha na psicologia para explicar. Tão importantes que tive de repetir ‘pai’ e ‘mãe’ tantas vezes nesse parágrafo.
Muitas pessoas adotam, mas se deixam escravizar pelo conceito biológico. Escondem da criança adotada sua condição de adotada enquanto podem. É como se a adoação não fosse uma filiação plena, o que ela só passa a ser se “filho” for entendido, repito, como um lugar construído e não como uma condição biológica apenas. Particularmente penso que as pessoas têm direito à sua história. Que os filhos adotivos devam saber de sua condição desde cedo, encontrando-se, claro, as formas adequadas para se apresentar a situação. O filho da barriga, o filho do coração. Deve estar claro que ele/ela jamais será filho biológico de seus pais. Para muitos, essa é uma falta que precisa ser bem elaborada e desconstruída, seu peso nos ombros aliviado pela ênfase no lugar simbólico de filho/filha, construído pelo acolhimento, pelo afeto, pelo amor da convivência. Os desarranjos do esperado sempre irão requerer dos sujeitos rearranjos. Assim é a vida. Para tudo.
Diz o povão: “Pai é quem cria”. E é isso mesmo. Pode coincidir de que quem crie seja o pai biológico ou não. A vida é uma teia de relações. Precisamos cuidar delas. A família é a teia inicial, a teia de sustentação. Tenha ela a configuração que tenha, seja ela feita do mesmo sangue, seja ela feita da mesma alma.
Chegou a Sofia, minha sobrinha. Adotada pela minha irmã e meu cunhado. Chega brilhando depois de uma longa espera, depois de uma gravidez simbólica regada pacientemente com amor. Oferta-se à nossa família para receber muito carinho, muito cheirinho, muita babação. Vem para nossa família e já é filha, sobrinha, neta, sobrinha-neta, irmã, prima. É como disse o Thomaz Nogueira, veio para ocupar o lugar do vovô na Kombi.
Nosso mundo é um mundo plural. Há quem não acredite que exista alguém lá em cima mexendo os pauzinhos, cuidando do script das nossas vidas. Há quem acredite. Para quem acredita, eu incluído, Sofia fez uma boa negociação por lá e escolheu vir para um colo especial, de uma família bonita, onde certamente será muito feliz. Falei, divaguei e filosofei. Mas, no fundo, era dessa “Escolha de Sofia” que eu queria falar. Ela ainda caprichou na escolha: fechou ter vindo ao mundo no dia do aniversário da minha irmã, a fofura.
Bem-vindo ao seu novo mundo, Sofia. Que a felicidade seja a melhor hóspede, sua e de seus pais, para sempre. É amor, de todas as cores e sabores, que nós desejamos para vocês. Amém.
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.
Vinicius de Moraes
Meu pai morreu há três meses. Foi o mais próximo que a morte chegou de mim. Antes disso, ela tinha me visitado quando levou minha vó, há 15 anos. Um hiato que me fez esquecer da morte por um bom tempo, ocupado que estive em viver as coisas da vida.
Procurei entender a morte do meu pai. Eu li tudo que pude sobre perda, separação, angústia, luto. Li sobre a dor do amor. Livros, artigos, assisti a vídeos e filmes. Tentei buscar um sentido para a morte do meu velho, como recomenda o psicólogo judeu Vicktor Frankl. Ele sobreviveu à barbárie de Auschwitz dando sentido à experiência trágica. Frankl dizia a si mesmo que precisava explicar ao mundo a psicologia de um campo de concentração e isso o manteve vivo. Só de Frankl, eu li três livros.
Descobri nas minhas leituras que o luto normal demora pelo menos um ano. Tempo do primeiro tudo sem a pessoa: primeiro dia sem, primeiro mês sem, primeiro dia dos pais sem, primeiro aniversário seu sem, primeiro aniversário dele sem, primeiro Natal sem, primeiro ano sem, primeira falta de colo. A morte do meu pai me trouxe mais pesadamente a consciência da finitude. Mas me trouxe muito mais do que isso: trouxe uma maior clareza sobre minha própria existência.
Ter consciência sobre si mesmo é um dom que desenvolvemos com a idade. Podemos potencializar e acelerar esse dom por meio de eventos pontuais de dor. Aprendemos a ter consciência do que vale e não vale a pena investir, de quem vale e de quem não vale gostar. Fica clara a consciência de que a vida precisa ter qualidade. Abandonamos sem dó aquilo e aqueles que nos fazem mal. No entanto, esse ter consciência sobre si traz no pacote a ferida da mortalidade. Nascemos, crescemos, procriamos (alguns) e vamos morrer. Simples assim. E complexo assim. Porque precisamos decidir o que é, afinal, a morte para nós e isso vai fazer diferença em como a gente vai viver.
As pessoas lidam com a morte de formas diferentes. Há graus de angústia da morte. Pensar nela geralmente nos paralisa porque é a única certeza que temos sobre o futuro. Como não podemos ficar paralisados, senão vira algo patológico, desenvolvemos formas de elaborar essa angústia do inevitável. Há quem não pense na morte, um grau zero que se toca com o grau cem: o medo é tanto que se evita falar sobre. Há quem desafie o medo da finitude buscando construir uma obra na terra que lhe perpetue, ou por meio dos filhos ou por meio de algo notável. Há quem busque na religião o exílio, a explicação e o conforto contra a ideia de que a morte seja o fim definitivo. Enfim, fato é que a angústia de morrer se faz presente de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau, como pensamento casual ou ideia que persegue cotidianamente. A morte é pauta inevitável da vida.
A angústia de morrer vai e vem durante nossa existência. As crianças são introduzidas à morte pelos bichinhos de estimação que se vão, pelas folhas secas caídas que encontram ao pé das árvores, pelos avós que desaparecem de repente. Quando contei às minhas filhas Clara (dez anos) e Marina (nove) sobre a morte do avô, as reações foram diferentes. Marina chorou demais, trocou de mal com Deus por lhe levar o avô. Clara se manteve em silêncio. Marina vez por outra me vem dizer que está com saudade do avô e chora. Clara, não. No entanto, pegando sua agenda escolar para verificar o que tinha de tarefa, vi escrito no calendário, no dia 1o de setembro, com sua letrinha redonda, “Vô, três meses. Saudade. :.(“. Meu pai morreu no dia 1o de julho. As crianças, como todo mundo, também têm formas singulares de elaborar a perda de quem amam.
Os adolescentes, em geral, desafiam a morte. Nesse período a angústia explode com força. Arriscam-se em atividades radicais, saltam de paraquedas, fazem rachas. Adoram ícones da morte, como Hitler. Lançam a catexia fortemente em jogos como Grand Theft Auto, em que a morte é banalizada. Alguns chegam mesmo a considerar o suicídio. Este é o recado: “Dona morte, não tenho medo de você. Não me venha com close errado”. Assim se cruza o tempo da juventude. A vida segue e viramos adultos.
Como adultos, as preocupações mudam. Vem a carreira profissional para cuidar. Vem a família para zelar. Deixamos a morte de lado porque a roda-vida exige demais e quase não deixa tempo para pensar nisso. Só que, de repente, duas coisas acontecem: a meia-idade e sua crise e a morte recorrente de pessoas da geração anterior. Parentes, tios, pais de amigos, os próprios amigos mais velhos, nossos pais. Eles começam a ir. À medida que eles vão, a meia-idade vem. Esse encontro inevitavelmente faz da morte uma presença constante nessa parte da vida que é, fato, a parte descendente da existência. Nascemos, crescemos, procriamos (alguns). O próximo passo é morrermos. Como lidar com essa certeza, que é a certeza derradeira da vida?
As pessoas lidam com a morte à espreita de várias formas. Por causa de sua história pessoal, de sua singularidade, umas buscam auxílio na família e nos amigos. Outras se aproximam da espiritualidade como forma inconsciente de buscar um seguro para o depois da morte. Alguns, mais cientes de sua fragilidade humana, vão à terapia. Outros, ainda, escrevem textos sobre a morte para lidar com a morte que se apresenta.
Meu pai morreu há três meses. Meu velho me deu um grande presente no fim da vida. Ele me fez redefinir minha relação com a morte. Eu tinha medo da morte. Hoje não tenho medo. Meu medo foi ressignificado. Hoje eu vejo a morte como algo que faz parte da vida, algo sobre o que você pode partilhar com outras pessoas, sem razão para ter medo ou vergonha de fazê-lo. Hoje eu converso sobre a morte, coisa que evitava fazer. Redimensionei a importância do velório como prática social. A presença em velórios tem uma função afetiva fundamental. São partículas de afeto que se juntam numa constelação de carinho e que ajudam a sustentar o corte abrupto do afeto roubado pela morte. Estar lá é dizer: eu me importo. E isso faz uma diferença imensa para quem está machucado.
Hoje a morte tem uma forma bem diferente para mim. Ela não é mais aquela morte de roupa preta com a foice na mão. Ela é bem distinta daquela morte dos nossos encontros cotidianos, em que a vemos como algo violento, assustador e tabu. Há outras mortes além daquela que a mídia nos entrega diariamente. Descobrir isso é libertador.
A lição que resume tudo isso é que o confronto com a morte não precisa ser um desespero. A morte sempre convoca um renascimento obrigatório de nós mesmos. Renascer é um sentido bom que podemos dar à morte porque pensar na morte requer pensar na vida. No fundo, eu acho que não seja da morte que as pessoas têm medo. É outra coisa muito mais trágica e perturbadora que nos assusta. Temos medo de nunca ter vivido. Assusta-nos chegar ao fim de nossos dias com a sensação de que jamais estivemos realmente vivos porque nunca conseguimos descobrir o que é a vida de fato. Mas sempre é tempo. Cuide de seus canteiros, “antes que chegue a morte ou coisa parecida e nos arraste moço sem ter visto a vida”. Cecília.
Em “Um conto de duas cidades”, Charles Dickens nos fala da morte. “Pois, à medida que eu me aproximo mais e mais do fim, viajo em um círculo mais e mais próximo do começo. Parece ser uma das formas de suavização e de preparo do caminho. Meu coração é tocado por lembranças que estavam há muito tempo adormecidas”. É isso. A morte é o nosso reencontro com um começo de que já não nos lembramos mais. Afinal, existirmos: a que será que se destina?
A morte é a noite da vida. É um laço que caça a infinitude. É o anzol que volta, sem falha, para fisgar a existência que se pensava eterna. É pau. É a pedra de Drummond. Mas definitivamente não é o fim do caminho.
Over
Sério: quando um relacionamento termina, ele tem de acabar. “Ain, mas a gente é amigo!”. Amigo é meu ovo! Terminou, acabou! “Ain, mas ele está sofrendo!”. Problema dele, dos amigos dele e da família dele. Não existe uma forma de reequilibrar a vida pós-término sem se distanciar. Corte tudo que alimenta a centelha de esperança, apague os nomes das agendas, limpe o Facebook, bloqueie todo mundo que vai fazer mal. Depois, lá na frente, quando encontrar no shopping um dia, diga “oi, tudo bem?”. Mas lá na frente. No começo, mude de calçada mesmo. Vai por mim. Se não a bagaça não sara. Como sarar se ficar cutucando a casquinha?
Amor do avesso
Toda maneira de amor vale a pena. Toda maneira de amor vale amar. Também acho. Mas há maneiras e maneiras de amar.
Há o amor escancarado, declarado, esparramado para o mundo. Rosas e poesia, mel e John Green. Há o amor tímido, que só se mostra de vez em quando, saindo da toca às vezes para mostrar seus afetos mais sinceros. Desconfiado. Há o amor platônico, que habita nossos desejos mentais e não ousa ganhar mundo. É aquele que a gente deixa assim ficar subentendido e que pode até parecer fraqueza. Que seja fraqueza então. E há o amor pelo avesso.
Quando sofremos um trauma muito grande, a gente desmaia. O corpo desliga o disjuntor para a gente aguentar o tranco. O corpo é uma máquina perfeita. Desmaiamos para não ter de encarar uma parada maior do que podemos suportar. O amor pelo avesso é mais ou menos isso: um desmaio nos afetos por amar demais. Explico melhor.
Há pessoas que amamos muito, mas reconhecer e exaltar esse amor é, de alguma forma e por alguma razão, algo absolutamente insuportável para nossa ordem das coisas. Por muitas razões: por vaidade (reconhecer que amo a pessoa é assumir que há coisas nela que admiro e – me poupe! – não posso dar esse cartaz para ela), por impossibilidade social (abrir meu amor me trará cobranças sociais imensas) ou até para não assumir gostar de alguém socialmente ingostável (“Ain, como assim você ama justamente essa pessoa, esse traste, esse lixo?!”). Aí o disjuntor do amor desliga – pela sobrecarga de amor intolerável – e a gente manda o amor achar outra forma de ser. Ele que se vire. É nessa hora que esse danado se vê desafiado e parte para a ignorância, para a força bruta.
Quem ama do avesso generaliza os defeitos e particulariza virtudes do ser amado. Critica quem queria elogiar, rejeita carinhos que amaria receber, empurra para longe quem se oferece para ficar perto e cuja pertidão – à moda de Guimarães Rosa – quer mais que tudo. Procura o ponto que machuca no outro para praticar sua acupuntura hostil.
O amador do avesso é um autossabotador e um narcisista. Autossabotador porque não se permite usufruir do amor aberto que, convenhamos, é gostoso pra caralho. É um narcisista porque acredita de verdade que todas as 7 bilhões de pessoas do planeta Terra têm a obrigação de entender sua forma de ser e se adaptar ao seu jeito de amar, esse com a costura para fora. Em ambos os casos, uma boa terapia pode ajudar a descobrir por que quem ama pelo avesso acredita que não merece ser amado plenamente – e daí se sabotar – ou pode ajudar a se tocar de que não se é o centro gravitacional do universo. Se achar a bala que matou Kennedy é muito peso para uma cabecinha só. Tem de ver isso aí.
Quem ama pelo avesso pensa que ninguém nota. Ok, uns não notam mesmo e preferem ir embora porque ninguém aguenta a insuportabilidade de quem só chora miséria e não abre a porta dos afetos. Nem se dão ao trabalho. As pessoas vão embora, saiba. Às vezes para sempre. Mas uns notam. Porque também amam, começam a devolver o amor do avesso. Começam a gostar ignorando, provocando, irritando, espezinhando, ironizando, cutucando e – eventualmente – machucando. Além de tudo, ainda tem essa: amar do avesso evoca o masoquismo. Se o amor direito traz prazer no próprio ato de amar, o amor do avesso traz prazer por meio da dor, que é para confirmar a certeza que habita a cabecinha dura de que só se pode amar assim, com o velcro virado para fora.
Qual é a saída desse labirinto? Nenhuma para quem não quer sair e curte ficar dando de cara com os becos sem saída. Mas se reconhecer amando do avesso é o primeiro passo para mudar esse estado de coisas. Identificar quem é o objeto do nosso amor pelo avesso e o porquê da impossibilidade do amor pleno, do lado certo da força, é um outro passo à frente. É preciso se mexer para sair do lugar. Botar a cara no sol, mana. Fazendo lobby para os psicólogos, uma boa ajuda de um bom eletricista pode ajudar a consertar a caixa de força da mente. Tem curto-circuito por aí, parceiro. Não adianta tentar derrubar paredes na marra. E quem está a fim mesmo, sabe, sai do labirinto é por cima. Porque a regra da vida não é força. É jeito. É jeito. SF
Gotas
“Eu fiz o café para ela. Ela puxou a xícara, sorriu, pegou o adoçante e começou a pingar. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete gotas. As gotas pingavam e eu contava silenciosamente na cabeça. Ela parou na sétima. E sorriu. Eu sorri de volta. Aí eu vi que eu a amava. Eu sabia que ela ia parar na sétima gota. A cumplicidade está nos detalhes da vida.”
Ciúme
“Ciúme é besteira. Ciúme é amor verde, amor que não chegou no seu melhor tempo. Preocupar-se com o outro é de lei para quem ama, mas não para lhe tirar o oxigênio, para lhe fazer mudar o trajeto, para lhe silenciar as palavras, para lhe fazer engolir sua liberdade de escolha, de ir e vir. Ciúme é um agrotóxico no jardim do afeto: pode até aparentar não ter bichos, mas ele é o próprio bicho. Ciúme bom é o do zelo, o tranquilo, o do cuidado, o do ‘estou prestando atenção em ti porque me importo’. Ciúme bom é o que consegue rir da vã tentativa dos outros de tentar beliscar o que é aparenta ser nosso e nem é. O amor maduro faz do ciúme um atestado de afeto, não uma causa de tormento. O amor maduro não faz do ciúme uma arma contra o outro, o oprimindo, o constrangendo. Para o amor maduro, o ciúme não passa de um recado contínuo de que aqui, o nosso colo, é o melhor lugar do parceiro.” SF