Conto

Quatro tons de Branco

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Eu acreditava que nunca mais iria gostar de alguém. Todo mundo quando está arrebentado de amor sempre acha que o coração não tem a capacidade de se regenerar e remendar os tecidos necrosados. Aí ou a gente vai para um ostrismo, toda fechada para o mundo, ou parte para explorar as possibilidades. Eu tinha entrado naquela fase de curtição, em que o limite é o prazer e não o afeto. Nessa fase, a regra é escolher alguém que mexe com você, no bom e no mal sentido.

A pauta era uma entrevista com um secretário de Estado. Dividir minha vida amorosa de franco-atiradora com a loucura da profissão de jornalista passou a ser a receita para manter a sanidade depois que ele se foi daquela forma abrupta naquele acidente.

– Toca pra Ilha da Fantasia, Cabeça.

Ilha da Fantasia é como, nós, jornalistas, chamamos o condomínio mais chic da cidade, onde moram vários políticos, empresários e mais uma dezena de pessoas que dividem o glamour das páginas sociais com o segredo de justiça dos inquéritos da Polícia Federal.

– Por que na Ilha, Fernandinha?, perguntou o Cabeça.
– Vai ser na casa dele. No escritório da casa dele. Foi a condição para ele dar a entrevista. O Kraken disse pra gente ir lá, a gente vai lá, Cabeça. Um dia quando tu fores editor, tu mandas. Por enquanto tu és o motorista. Obedece e pisa aí.
– “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
– Tu e tuas frases originais… Registrou essa? Alguém pode roubar…
– A sabedoria popular sabe das coisas, bebê…

Ele me esperava no escritório da casa. A casa tinha uma garagem com quatro carros estacionados. Uma SUV BMW branca chamava atenção. Ao entrar ali, caí na real quanto à desigualdade de distribuição de renda no país. Tem gente que é muito rica. São muitos mundos muito diferentes em um mesmo país. Confesso que tenho uma raiva ressentida dos muitos ricos. Sempre trago na cabeça o que meu pai me disse um dia: há um teto salarial para gente honesta. Mais do que aquilo, só pisando nas pessoas ou jogando valores no lixo. Parece que é assim mesmo.

– Bom dia!, eu disse ao entrar no escritório. Havia um quadro de Frida Kahlo e um de Picasso. Imitações, claro. Aquelas sobrancelhas de Frida sempre me deram arrepios, preciso confessar.
– Olá, entre. Estava lhe esperando.

André Branco, uns 40 e poucos anos, meio grisalho, vestindo uma camisa polo preta. Era o secretário da minha pauta. Ele me cumprimentou com dois beijinhos. Foi estranho. Sempre olhei para aquele cara com a ojeriza de militante de esquerda. Mas a iniciativa foi dele e não tive muito como evitar.

– Posso fotografar o lugar?
– Claro. À vontade. Vocês não andam mais com fotógrafos?
– Redução de custos. A gente joga em todas. Depois que inventaram o videorreporter…

Enquanto fotografava, o perfume dele, que ficou colado em mim, me desconcentrava. Era francês, eu tinha certeza. Fiquei com vontade de perguntar o nome, mas não combinava nem com o momento e nem com a tarefa para qual eu havia sido designada. Era do tipo de perfume que a gente sente e tem vontade de comer a pessoa que está usando. O perfume certo na vulnerabilidade adequada pode render bons caldos.

– Quantos anos você tem?
– Isso não se pergunta a uma mulher, secretário.
– Kouros. Yves Saint Laurent.
– O quê?
– Meu perfume. Você não consegue disfarçar que gostou dele. Quantos anos? É justo. Uma informação para cada.
– Vinte e dois. Bom, tenho umas perguntas a lhe fazer. Podemos? Posso gravar?
– Claro.
– O senhor está sendo acusado de fraudar uma licitação na sua secretaria. O que o senhor tem a dizer sobre isso.
– Não há fraude. Tudo foi feito dentro da lei. O que houve foi uma dispensa de licitação porque a empresa que ganhou o serviço era a única com capacidade técnica atestada. O problema é que as pessoas não entendem e quando se fala em ‘dispensa de licitação’ acham que isso é ilegal. Lei 8.666. É só ler.
– Mas na denúncia apresentada pelo Ministério Público…
– O Ministério Público quer ser mais real do que o rei. São administradores frustrados que querem administrar pelo executivo. Até hoje eles não entenderam direito qual é a função deles. Você é uma jovem repórter. Sabe qual é a sua função no jornal. Se quiser fazer a função de outro, cujo conhecimento técnico não possui, não vai dar certo, entende?

Achei que foi uma indireta para a função de fotógrafa.

– Segundo a denúncia do MP, a empresa é de um primo seu.
– E qual é o problema? Era a única empresa com capacidade técnica para fazer o que tinha de ser feito. Eu vou prejudicar a população porque a empresa é de um primo? Besteira. Seu nome é Fernanda, não é?
– Sim.
– Então, Fernanda. Coisas precisam acontecer. Nós criamos as condições para que elas aconteçam. As pessoas usufruem ao máximo delas. Depois a gente passa e o que fica é a lembrança do usufruto.

Ele falou aquilo olhando nos meus olhos. Aquele homem não chegara aonde chegara à toa. Ele sabia o que dizia. Ele sabia convencer. Ele era um homem bonito. Já não me parecia um monstro abominável do capitalismo selvagem.

A entrevista continuou. Ele respondeu tudo com segurança. Saí meio que convencida.

No carro, Cabeça perguntou se tinha ido tudo bem. Eu disse que sim e fomos adiante. Tinha outra pauta. Era sobre o aniversário da cidade. Um historiador da universidade. Gente chata. O cara já tinha desmarcado duas vezes.

– Vamos para a Universidade, Cabeção. Ver se dessa vez rola.

– “Água mole em pedra dura…”

Não sei dizer a razão, mas aquele cara não me saía da cabeça. Fui fuçar para ver se ele tinha Facebook. Tinha. Era casado. Mulher bonita. Dois filhos. Um casal. Fotos em Chicago, em Veneza, Paris. Torcedor do Botafogo. Acho que um dos cinco da cidade, que vão pro estádio numa kombi, pensei comigo, o sacaneando mentalmente. Ri sozinha. Alice perguntou quem era.

– Quem é o quê?
– Me poupe, Fernanda. Eu te conheço. De quem é esse perfil do Facebook aberto aí.
– Virou advinha agora?

Fato é que Alice me conhecia como ninguém. Minha amiga, confidente, cúmplice. Contei a história para ela.

– Furada. Tu sabes. Casado é rolo.
– Ele nem sabe de mim… quer dizer, nem sabe que estou stalkeando ele.
– Cara, eu te apoio em tudo. Mas se tu se meter nessa, tu tá sozinha…
Depois que voltei da casa da Alice, fiquei pensando. Fiquei tentada a ligar para ele. Ele me deu o cartão com o número do celular anotado à mão. Resolvi mandar uma mensagem.

– “Olá. Aqui é Fernanda, do jornal. Preciso de informações para fechar a matéria. Aguardo retorno.”
– “Olá. Aqui é Branco. Quando quiser. E onde quiser…”

Caraca. Por essa eu não esperava. “Onde quiser…”! Reticências. Reticências são malvadas. Reticências contêm o mundo. Comecei a gostar do joguinho.

– “Eu escolho o lugar? Perigoso isso…”
– “O perigo dá o tom da vida… Me ligue amanhã à tarde e combinamos.”

Passei a noite olhando para o teto do meu quarto e pensando em algumas coisas. Pensei sobre a regra de ouro de nunca ir para a cama no primeiro encontro. Pensei em todos os conselhos para nunca se meter com homem casado. Pensei na ameaça explícita da Alice. Pensei no desejo que aquele homem me desperta. Pensei na tensão. Pensei no tesão. Pensei na transa. Pensei muito na transa. Minha imaginação dirigia o movimento dos meus dedos por baixo do edredom. Olhos fechados, viajei na sua presença dentro da minha imaginação, dentro de mim. Definitivamente eu o queria. Se ele fazia isso comigo só no desejo, imagina no jogo de corpos. Dormi leve como uma nuvem.

“Oi, quero você.”

Send. Dane-se. Vamos ver o que rola. Nem esperei amanhã à tarde,

“Onde te encontro, menina?”, veio a resposta.

“Queria tomar água de coco, mas não rola. Estou sozinha com minha vó.”

“Mande seu endereço”. Eu mandei. Tem uma hora na vida da gente que a gente vai dando enter, enter, enter na vida, sem ler. Seja o que Deus quiser…

Quarenta minutos depois, um SMS avisando que chegou. Um carro preto parado em frente de casa, sob a mangueira do terreno do outro lado da rua. Eu decidi ir lá. Confesso que estava suando frio. Minhas mãos molhadas. Meu coração saindo pela boca. Era muita porra-louquice. Mas o desejo de ver aonde isso ia dar era maior que o medo.

– Oi…
– Quer entrar? A porta de lá está aberta.
– Tá.

Ao entrar no carro, senti o perfume no ar. Desconfio que o filho da mãe borrifou para me inebriar. Sem falar nada, ele alcançou um saco plástico no banco de trás e aumentou um pouco o som – rolava Tarde em Itapoã. Ele estendeu o saco plástico e disse:

– Pra você, menina.
– O que é isso?, disse, abrindo a sacolinha.
– Água de coco. Faz bem para o colesterol e evita câimbras. É em caixinha, mas dadas as circunstâncias…

Tive que rir. Além de bonito, cheiroso, o cara ainda era espirituoso. Gosto de homens que me fazem sorrir. Não gosto dos que me fazem gargalhar, no entanto. Quer dizer, não para ter algo. Tem de ser aquele sorriso roubado, que não dá para conter. Ponto para ele. Charme é aquilo que desequilibra os olhos e baculeja os pensamentos. Ele era muito charmoso, vamos combinar.

– Obrigada. Não precisava. Quer uma?
– Quero. Obrigado.

Ele colocou o canudinho na caixinha dele e me deu, antes de enfiar na minha e ficar para ele.

– O que você quer de mim?, ele perguntou enigmático.
– Quero testar o meu poder de sedução. Provar que não existe homem fiel. Mostrar que o homem age por instinto e não pela razão.
– Eu estava me referindo à informação para a sua matéria. Mas já que você falou isso, quem é que traumatizou você assim?

Oops! Sorri para disfarçar que acusei o golpe. Ele falou “você”… Quando um homem muda do “tu” para “você” é porque ele está a fim. Ele estava a fim. Mas não era efusivo, nem afoito. Mais um ponto para ele. Não gosto de efusividades.

– Ninguém me traumatizou. Você é casado. O que você está fazendo aqui?
– O que uma coisa tem a ver com a outra?
– Vocês homens são todos iguais.
– Frase original…

Eu me senti o Cabeça.

– Você quer casar comigo? Acabar com meu casamento?
– Claro que não!
– Então não vejo problema. Há diferentes tipos de afetos. Uma coisa é você ter sua família, gostar dela, protegê-la. Outra é você dar vazão para as paixões que se apresentam na vida.
– Quer saber? Esse seu papo é muito canalha, cara!
– Quer que eu vá embora? Sem problema.
– Não, não quero. Eu quero você. Quis no dia que vi você.

Lá estava eu falando “você”.

Ele olhou para mim. Sorriu. Ouviu o que queria. Conversamos amenidades por meia hora. Ele trocou a música. Colocou Marisa Monte, “Beija eu”.. Ele foi se aproximando de mim. O perfume foi ficando mais forte e quanto mais forte ficava, mais eu sentia que ia me entregar àquele homem. Ele chegou com o rosto perto de minha boca. Dava para sentir o seu hálito de menta. Ele veio em minha direção e parou. Olhou-me bem dentro dos olhos. Disse, num sussurro:

– Eu sou um obediente musical.

Chegou mais perto. Senti que estava prestes a me beijar. Antes de colar seus lábios nos meus, no entanto, passou a ponta da língua no canto da minha boca. Depois passeou com ela pelos meus lábios. Explorava meu rosto como se desbravasse uma selva que lhe era virgem. Mordeu de leve. Eu já estava maluca e ele sabia disso. Sentia e ouvia a sua respiração quente. Ele enfiou a língua em minha boca e encontrou a minha língua, molhada e receptiva. Foi a primeira vez que ele entrou em mim. Chupava minha língua sem força, quase flutuando sobre ela, como quem sorve um sorvete de casquinha no início, num beijo leve e bom. O beijo é o que muda o desejo de lugar.

Seu corpo se envergou sobre o meu. Ele me abraçou enquanto me beijava. Estava completamente entregue àquilo. De repente, ele puxou a gola de minha blusa e começou a morder meu ombro, meu pescoço, minha nuca. Eu queria explodir. Estava completamente encharcada de desejo. Ele, atraído por isso, eu desconfio, pousou a mão sobre a minha coxa. Foi deslizando a mão para a parte interna da minha perna. Devagar. Segurei sua mão. Ele recolheu. Segurei sua mão. Ele entendeu. Seu dedo achou o caminho até mim. Deixei que ele entrasse em mim pela segunda vez. Gozei a primeira de incontáveis vezes.

Sua mão era macia. Senti a maciez também quando a colocou em minha barriga, levantando a minha blusa. Sabia que aquilo era um caminho sem volta. A gente sabe quando chega ao ponto do não retorno nas querências, cujo o único destino possível é o sexo. O sexo bom. Como aquele que se anunciava com seu polegar a explorar caminhos por debaixo do elástico meu soutien… Sua mão não tinha pressa. Já tinha mostrado que sabia aonde ia. Levantou meu soutien, libertando o que era seu objetivo. A rigidez do mamilo denunciava o quanto eu queria e sinalizava para ele para que continuasse. Senti seu polegar apertar de leve. Depois foi o indicador a circular a auréola como um cego lendo desejos em braile. Eu respirava forte e cada vez mais rápido. Sua mão envolvia meu seio e com a palma ele fazia leves pressões. Soltei um “ai” involuntário. Tesão dói.

Minha blusa já estava no meio da barriga quando ele olhou para mim e, com o olhar, anunciou que iria levantá-la mais. Pegou delicadamente a blusa com as duas mãos em sua extremidade inferior e foi levantando. Ali estava eu, com praticamente um estranho, de peito nu. Ele olhou. Ficou um tempo admirando como se estivesse me fotografando mentalmente. Passou a mão numa pinta que tenho acima do seio direito. Mordeu o lábio. Sem dizer nada, foi chegando de novo junto a mim. Mergulhou nos meus peitos e cheirou meu corpo. Eu apertava seu rosto contra o meu corpo e passava a mão por entre seus cabelos. Ele se deliciou comigo. Sua língua me fazia sentir raios no corpo. Mordiscava e lambia. De mim, ele sentia o gosto. Por ele, eu me senti desejada.

Decidi devolver o carinho. Minha mão correu por sobre sua perna. Pude sentir o tamanho do seu desejo por mim. Roupas prendem desejos. Roupas impedem o toque. Delicadamente abri o botão de sua calça e abri seu zíper. Não tinha mais volta. Ele seria meu. Ele puxou o banco do carro para trás, reclinou, deitou e passou a mão nos meus cabelos. Foi a senha. Beijei sua barriga. Senti mais de perto aquele perfume que me deixava zonza. Eu também tinha meus segredos com a língua. Eu também sabia mordiscar. Eu também gosto de sorvete. Foi a terceira vez que ele entrou em mim. Eu não sei que música tocava, mas tinha um solo de guitarra delicioso que cadenciava os meus movimentos. Eu adoro isso.

Ele, que não dissera uma palavra até então, disse:

– Sabe onde eu queria estar agora, menina?

Me chamar de menina tornava a coisa mais proibida. O cara era bom.

– Onde?, respondi fazendo minha parte no joguinho.

– Dentro de você…

Fui pra cima dele. Enquanto nos beijávamos, ele levantou minha saia, acariciou minhas coxas e abaixou até onde pôde a minha calcinha, um estrago a essa altura do campeonato brasileiro série A real oficial. O resto ficou comigo. Na dança de corpos, nos procuramos. E nos achamos. Quando nos achamos, paramos, ambos. Ao mesmo tempo. Ele pegou meu rosto com as duas mãos e disse:

– Eu te quis na hora que eu te vi.

Ele deslizou para dentro de mim sem esperar mais, me preenchendo as vontades. Estava suada. Ele também. Mesmo com o ar-condicionado do carro ligado. Minha barriga molhada esfregava na dele. Minhas mãos entrelaçavam e apertavam as mãos dele. Eu cavalgava em cima daquele homem. Surfava nele. Ele me puxava os cabelos e alternava seus beijos em minha boca e em meus peitos. Seus beijos eram meu açoite. Sentei olhando para ele. Sentei olhando para as estrelas pelo para-brisa. Era a quarta vez que ele entrava em mim. Não estava claro quem dominava quem. Também pouco me interessava. A última coisa que eu queria naquela hora era pensar em masturbação sociológica de gênero. Sociológica de gênero, que fique claro.

Eu gozei muito. Longamente. Minhas pernas perderam as forças. Senti choques pelo corpo. Tremi. Arrepiei. Tive câimbras que a água de coco não conteve. Ele esperou muito por mim. Mas por fim gozou também. E eu com ele, de novo. Ele me apertou com tanta força quando explodiu que me deixou a cintura roxa. Foi a melhor transa da minha vida. Eu pensei que não diria essa frase de novo. Comecei a desconfiar de que só o sexo com amor vale a pena. Ali era puro sexo, puro tesão, carnaval, festa da carne. Mal conhecia o cara. Ele mal me conhecia. Mas a gente se encaixou maravilhosamente bem. A vida tem dessas. Não é porque é sexo casual que a pessoa tem de tratar você mal.

Dane-se o moralismo! Até esqueci que ele era casado. “Uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa”, diria Cabeça se estivesse de voyeur da cena.

Ele passou a mão nos meus cabelos, tirando do meu rosto. Eles estavam desgrenhados. Ele sorriu e disse:

– Você tem uma boca linda. Mas a pintinha é a cereja do bolo.

Ele tinha gostado da pintinha. Eu sorri. Eu disse que precisava voltar. Procurei minhas roupas largadas do avesso pelo assoalho do carro. Vesti e falei:

– Eu ia te fazer a pergunta para a matéria agora. Mas acho que vou deixar pra outro dia.

Ele entendeu. Saí sem dar tchau. Esperou eu entrar e foi. Aquilo ainda me renderia um baita sermão da Alice no dia seguinte. Mas eu não conseguia tirar da cabeça e do corpo as nuances do Dr. Branco. As quatro vezes que ele entrou em mim. Definitivamente eu queria mais. Mais tons de Branco.

É. Coisas precisam acontecer. Nós criamos as condições para que elas aconteçam. As pessoas usufruem ao máximo delas. Depois a gente passa e o que fica é a lembrança do usufruto. Tive a nítida impressão de que essa história iria continuar…

Eu quero apenas

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Eu quero apenas
[Sérgio Freire]

A chuva caía forte naquele dia. Era Quinta-feira Santa. Ícaro levantou, escovou os dentes no ritmo dos pingos da goteira no forro de gesso. Mais cedo ou mais tarde, ele sabia, o gesso abriria. Aprendera que mais cedo ou mais tarde as coisas sempre acontecem. Tudo é questão de tempo. O tempo é o senhor da razão. Ouvira a frase em algum lugar, ela ficou guardada e sempre vinha nas horas difíceis.

Colocou a mão no bolso do short com que dormira. Havia uma folha de papel dobrada. Era o desenho da família feito por Lígia, sua caçula de seis anos. Ele não jogava fora os desenhos das filhas. Não tinha coragem. Dobrava-os e os colocava dentro dos livros da estante. Quase todos os livros tinham desenhos das meninas.

Todos dormiam e a empregada ainda não tinha chegado. Resolveu comer algo a título de café da manhã. Na cozinha, descascou um tucumã, rasgou um pão com as mãos e jogou tudo dentro. Preparou displicentemente o sanduíche de que aprendera a gostar na casa da vó, nos idos da década de 70.

No escritório da casa, computador ligado, deu a primeira mordida. O gosto da infância o invadiu. No YouTube, procurou uma música que lembrava aquela época. Começou a ouvir “Eu quero apenas”, de Roberto Carlos. Sua memória o levava de volta aos seis anos de idade, para o segundo andar da casa de sua avó, no bairro de Aparecida. Da janela, dava para ver o rio. O tucumã, a música, a memória… Fechou os olhos.

“- Quer bolacha, meu filho?”

Ícaro abriu os olhos para encontrar fitando os seus as petecas azuladas dos olhos de sua vó. Cabelo cinza, já patinado pelo tempo, um sorriso nos lábios, a mão estendida lhe oferecendo uma bolacha salgada, daquelas do pote que ficava em cima da geladeira. O Pote era destino certo dos netos quando chegavam. De tão mágico, era substantivo próprio, escrito com letra maiúscula: o Pote.

“- Vó?!”, disse assustado.
“- Sua mãe foi na Zilma, costureira, e vai já voltar. Cuidado com essa janela”.

Estava num sonho. Mas era muito real para ser sonho. Pegou a bolacha oferecida e abraçou a vó forte, quase derrubando seu corpo frágil.

“- Eita ferro! Calma aí! Quase me derruba!”, disse a vó rindo com o inesperado ataque de carinho.
“- Vó! Eu te amo! Que saudade! Bênça, vó!”, disse, sem largar Dona Nazaré.
“Eu também te amo, Iko, meu filho. Deus te abençoe e te faça feliz. Mas come a bolacha. Tem suco de maracujá lá embaixo e, se quiser, a vó faz um sanduíche de tucumã. Não faça barulho, viu, que hoje não é dia.”

O cheiro da bata da vó lhe trazia paz. Só ela tinha aquele cheiro. As pessoas, cada uma no mundo, têm cheiros próprios, seus. Depois que inventaram os perfumes deixou-se de amar os cheiros das pessoas. Vós têm cheiro de aconchego. Ícaro ficou abraçado à dona Nazaré, respirando forte como se quisesse armazenar o cheiro que já não sentia há mais de dez anos, quando uma doença rápida a levou, deixando um vazio imenso. A vó, pacientemente, esperou o abraço terminar, sorriu e disse:

“- Iko, meu filho, a vó tá lá embaixo. Qualquer coisa me chama”.

Afinal, o que era aquilo? Ícaro estava vivendo na sua memória. Virou realidade a lembrança que tinha quando fechou os olhos quase quarenta anos depois daquela cena que agora vivia. Voltara a ter seis anos, mas com todas as lembranças de sua vida de quatro décadas e meia. Ele se beliscou, como manda o manual dos incrédulos. Doeu. Então era verdade. Ele tinha voltado para um tempo que lhe era muito caro.

Respirou fundo e foi até o quarto da vó. Sabia que existia uma folhinha atrás da porta. Um daqueles calendários religiosos com passagens bíblicas. Olhou a data: 27 de março de 1975. Quinta-feira Santa. A folhinha dizia “Dei-vos o exemplo para que façais o mesmo que vos fiz” e indicava a leitura: Lc 4, 16-21. Aquilo tudo era muito real. Pela janela do quarto da vó ouviu o grito do seu João, bananeiro, passando no beco.

“- Ba-na-neiiiiii-ro! Banana prata, maçã e pacovã!”

Afinal, o que teria acontecido? A hipótese de Ícaro, um homem racional até demais, era a de que o sanduíche de tucumã, a música do Roberto e a memória tivessem alguma coisa a ver com aquilo. Pensou nas multidimensões da física, pensou nas histórias de viagens no tempo, pensou em tanta coisa… Sua cabeça fervia. Enlouquecera?

Ícaro decidiu explorar aquilo. Foi à janela, viu o rio de suas memórias. Depois desceu devagar as escadas que levavam ao térreo da casa. Desceu segurando no corrimão de tijolos boleado, típicos nas casas daquela época. Sentiu o cheiro da comida da vó vindo da cozinha. Ao pé da escada, olhou para a esquerda e viu a sala, com o estofado bege e as almofadas. No canto da sala, o vaso branco com flores naturais. À direita, via-se a cozinha ao fundo. Para chegar na cozinha, no entanto, tinha de se passar pela sala de jantar. Uma saleta pequena, com uma mesa, quatro cadeiras e um armário, onde a vó guardava sua louça e seu tabaco, que mascava. No teto, um ventilador ligado rangendo e dançando ao ritmo do rangido e no compasso do relógio de parede marrom.

Na saleta, foi até uma espécie de depósito que ficava embaixo da escada. Puxou a cortina e viu, para seu espanto, que a Espada ainda estava lá. Como o Pote, a Espada era outro objeto sagrado na casa da vó. Sua mãe contava que havia pertencido a seu bisavô, que com ela lutara na Guerra do Paraguai. Passou a mão na Espada, fazendo um carinho quase reverencial.

A casa da vó tinha ainda uma área, uma espécie de solário. Tinha uma porta no corredor da cozinha e uma janela que dava para a sala de jantar. Lá, dona Nazaré cultivava umas plantinhas em vasinhos e mantinha uma cadeira de macarrão. A cozinha terminava num quintal, onde também eram cultivadas plantas e vegetais, além de um vistoso pé de pimenta murupi. A vó estava no quintal.

“- Vó… preciso dizer uma coisa”
“- O que foi, Iko, meu filho?”. A vó sempre dizia o nome do neto seguido de “meu filho”.
“- Promete que vai acreditar em mim?”
“- Prometo. Fale pra vó.”
“- Eu vim do futuro, vó. Parece invenção, mas é verdade. Vim de 2014.”
“- Ave Maria, Iko, meu filho. Então eu já morri”, disse rindo.
“- Já, vó… Por isso queria dizer que eu te amo muito. Porque, sabe, vó, depois que as pessoas morrem, a gente até diz, mas nunca ouve um ‘também te amo’ de volta. E não ouvir faz tanta falta…”
“Eu também te amo, Iko, meu filho. Você é um menino bom e não sei como é sua vida no futuro, mas tenho certeza de que ela é abençoada por Nossa Senhora Aparecida. Ela não abandona os meus. Pega aquele sabão ali pra vó.”
“- Eu tenho duas filhas, vó. Lígia e Anna Julia.”
“- Que nomes bonitos, Iko, meu filho!”
“- É. Tom Jobim e Los Hermanos…”
“- …”
“- Deixa pra lá, vó… Vó, deixa eu te dar um abraço de novo, sentir teu cheiro?”
“- Ô, meu filho, claro. Vem cá. A vó gosta tanto de você…”
“- Me dá um conselho, vó? Um pra eu levar pro futuro?”
“- Iko, meu filho, você parece preocupado com a vida lá no futuro. Mas, sabe, os problemas da gente são do tamanho que a gente faz. Se a gente fizer grande, eles vão ser grandes. Se a gente fizer pequeno, eles serão pequenos. E o tempo, meu filho, é o senhor da razão. Ele tudo sabe, ele tudo sara. Tenha fé em Jesus e em Nossa Senhora Aparecida que tudo vai dar certo”.
“- Sua bença, vó.”
“- Deus te abençoe, te faça feliz e te proteja dos males do mundo.”
“- Vó, tem sanduíche de tucumã? Eu quero…”

Ícaro ouvira da sua vó o que precisava. Sentiu o cheiro de sua bata, já tinha sua bênção. Podia voltar para a sua vida atribulada de adulto no futuro, embora preferisse, no fundo, poder ficar ali, em 1974, olhando o rio.

Subiu a escada, sentou na rede e pensou que aquele era um sonho lindo, real, mas que precisava acordar. A realidade lhe esperava. Mordeu o sanduíche, lembrou do papel. Pôs a mão no bolso do short e pegou o desenho dobrado de Lígia. Começou a balançar a rede e cantou, de olhos fechados:

“- Eu nunca sonhei com você
Nunca fui ao cinema
Não gosto de samba, não vou a Ipanema
Não gosto de chuva nem gosto de sol
E quando eu lhe telefonei, desliguei, foi engano
O seu nome não sei
Esqueci no piano as bobagens de amor
Que eu iria dizer,
Ah … Lígia Lígia…”

“- Pai? Tá dormindo?”

À sombra da Castanholeira

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O caminho era o mesmo todos os dias. O muro azul descascado da casa ao lado, o latido ardido do cachorro da vizinha para quem passava. Sentado na cadeira de macarrão puído em frente à porta da casa a observar tudo e todos, o velho Português madrugador com sua ferida insarável na perna.

No campo de futebol que atrevessava para chegar à parada de ônibus, duas traves de madeira, sem redes, e um chão de barro com muita poeira. O campinho da rua sete resistia bravamente à especulação imobiliária que havia desconfigurado o bairro onde nascera. Ao passar por ali, era inevitável lembrar dos dribles e chagões do Maddy, o craque da infância, a sua inveja branca mais remota. Inevitável lembrar também do goleiro que fora, das defesas que ele próprio fizera, se jogando no chão feito um gato anestesiado. O campo parecia ter aprendido com eles: driblava e se defendia como podia das investidas das construtoras. A infância lhe era cara.

Atrás da trave que dava para a casa dos Smurfs, uma família de doze irmãos que tinha seu próprio time, havia uma árvore. Ele viu aquela árvore crescer. Quando criança, os moleques passavam e puxavam seus galhos de zoação, arrancavam suas folhas por divertimento. Em termos atuais, diríamos que sofria bullying. Ela cresceu. Dizem que à noite alimentava morcegos. De dia, no entanto, cedia sua sombra para o descanso do time-fora enquanto o grupo esperava o fim dos dez minutos ou dos dois gols, o que viesse primeiro. A Árvore era como se fosse mais um do time. Todos creseceram e foram cuidar das vidas. Ela sempre esteve  ali, claro, a observar os raros moleques que ainda trocavam o computador pela bola de futebol vez por outra e punham o pé no chão sem medo do bicho-de-pé e das frieiras. As mães daquela época eram menos histéricas do que as de hoje.

Todo os dias ele olhava para a árvore e lembrava de alguma coisa daquela época: os causos, as brigas, as risadas, as pessoas. Era um tempo bom. Por isso estava na memória.

Todos têm amigos esquisitos. Ele também tinha. Moisés era um garoto que sempre estava lá no campinho, mas nunca jogava bola. Cabeçudo, cabelo liso, sempre caindo nos olhos, olhos que nunca se viam. Ficava na dele e só respondia provocado. A molecoreba o chamava de “Guardião”. Sim, porque todo menino tem um apelido. Ou tinha, antes dessa chatice do politicamente correto. A escolha da alcunha veio exatamente porque ele não desgrudava da Árvore. Bem dizer, a Árvore era dele. Alguns até a chamavam de “A árvore do Moisés”. Ele era, definitivamente, o “Guardião”. Fazia sentido, como todos os apelidos fazem.

Além de introspectivo, alguns diziam que o Guardião era meio doido. Muitos tinham medo dele e de suas reações. Walter Vovó, um menino que tinha feições de velho, tinha verdadeiro pavor do Guardião. Da mesma forma que alguns tinha pavor do próprio Walter Vovó, parecido com o Smeagol. Se fosse hoje, certamente seu apelido seria Gollum. Mas ele não tinha. Ao olhar a árvore, enquanto olhava também o relógio para não perder o 306, lembrou de uma conversa que puxou com Moisés.

“Moisés, por que tu não desgruda dessa árvore?”

“É minha.”

“Sim, mas ninguém quer roubar a árvore. Todo mundo sabe que é tua…”

“É minha consciência.”

“Tua consciência?”

“É. Ela fala comigo. Ela me diz o que fazer. Quando eu preciso de ajuda, eu venho aqui e ela me diz o que eu preciso ouvir.”

Aquela conversa nunca lhe saiu da cabeça. Porque o Guardião falou com uma convicção que lhe parecia muito real. Assim ele leu a cena. Apesar de não conseguir olhar nos olhos do Guardião, ele possuia um certo dom de ler as pessoas quanto a falar ou não a verdade. Sabia que Moisés falava a verdade.

Demorou demais preso pelas lembranças e se atrasou. Perdeu o ônibus. Faltaria o trabalho naquele dia de sol escaldante de setembro por causa do devaneio no passado. Voltou para casa pelo mesmo caminho. Passou pelo campinho e olhou a árvore. Resolveu se aproximar e reencontrar uma velha conhecida que lhe emprestava sombra.

Ao chegar perto, largou a mochila encostada no muro dos Smurfs e chegou mais perto ainda. A árvore parecia pequena demais. É engraçado como quando reencontramos os lugares de nossa memória eles sempre parecem pequenos, como se tivessem passado por uma máquina do encolhimento.

“Oi, Árvore. Eu sou amigo do Moisés Guardião”, falou brincando e passando a mão no tronco marcado pelo tempo.

“Eu nunca te agradeci pela sombra do descanso. Obrigado.”

“Amigos de meus amigos são meus amigos”, uma voz saiu do meio das folhas.

Por um instante o seu coração disparou, saindo do ritmo. Suas mãos ficaram suadas de nervoso. A respiração em suspenso. O sol que lhe queimava antes de estar no abrigo da sombra da árvore só podia estar lhe causando alucinações.

“Por que demoraste tanto a vir falar comigo? Eu te vejo passar todos os dias a me olhar. Estava a te esperar.”

Os olhos arregalaram ao som da voz.

“Mas… como… que diacho…”

“Não tenha medo. Sou do bem. Como eu disse: amigos de Moisés são meus amigos.”

“O Moisés falava a verdade! Você fala!…”

“Claro. Mas as pessoas têm uma dificuldade de escutar os diferentes. Rotulam-nos de loucos, esquistos, malucos. Esquecem que cada um tem um mundo seu que partilha com o outros e um mundo seu todo particular, cujos segredos são nossos e verdadeiros para nós. Todo mundo tem um segredo inconfessável.”

“É…”, disse ele, lembrando com agonia do seu.

“Tu, por exemplo. Estás a viver um dilema imenso que te atormenta a existência”.

“Como assim? Como você sabe?”

“Árvores conversam com ventos, meu amigo. E ventos trazem os pensamentos.”

“Então se você sabe o meu dilema, me diga o que fazer. O Moisés um dia me disse que você era a consciência dele. Seja a minha então.”

“Passa-fome?”, a voz desviou-lhe a atenção. “Passa-fome, meu velho!”, falou agora alguém reconhecendo-lhe os traços esticados de adulto. “Passa-fome” era seu apelido de infância porque sempre tinha um pão com manteiga na mão.

“Keviny?”, ele também reconhecera o Smurf. “O Smurf número…”

“Sete. Smurf sete.” E fechou a cara com a lembrança do apelido que o irritava.

“Mas sim, Passa-fome. O que que tu tá fazendo aqui, cara? Tá igual ao Moisés Guardião, batendo papo com árvore agora?”

“Não… é que eu estava passando e resolvi parar para ver o campinho. Bons tempos aqueles, hein, Sete?”

“Porra, nem me fale… Não tinha contas, cheque-especial desses bancos agiotas, mil coisas que vão matando a gente todo dia aos pouquinhos. Não tinha de lidar com esses doidos de hoje. A vida tá doida, Passa… Tá foda pra todo mundo. Doidos, na nossa época, só o Guardião e Lambe-Lata da rua doze. Aquele moleque era doido pra caralho”. Os Smurfs sempre foram desbocados.

“É mesmo…”, riu se lembrando do Lambe-Lata. O menino tinha mania de passar a língua em latas e em tudo que era de metal. Só a lembrança da coisa arrepiava. Mas ele tratava o Lambe-lata com afeto porque ele era irmão protegido da Carla, filha da professora do grupo. Carla era linda. E disputada platonicamente. Estava no centro das paixões dos garotos de nove anos. Mas não dava bola para ninguém. Muito menos para ele, um menino magrelo, cabeludo, mirrado.

“Eu não sabia que tu ainda morava aí, Sete…”

“Não, cara, não moro. Depois que meus pais morreram, a casa ficou para a Keila…”

“A Smurfete…”

“Vai te ferrar, Passa-fome maldito!”, falou rindo, num misto de divertido pelo passado e chateado com ele também.

“Já comeu teu pão hoje?”, provocou sarcástico. E continuou. “Então, ela casou e foi morar em Campinas com o marido militar. A gente vendeu a casa. Tô aqui dando uma guaribada geral para entregar. Cara, deixa eu ir que a vida segue. Do caralho te ver, mano velho! Bom mesmo.”

“Falou, Keviny! Te cuida!”

“Falou.”

Pegou a mochila, evitou olhar para a árvore e se foi. Na volta, o Português feridento ainda perguntou:

“Que cara de espanto é essa, rapaz? Parece que estava a ver um fantasma!”, coçou a ferida e riu. Ele também riu de volta, comprimentou com um meneio de cabeça, ignorou a pergunta e seguiu. O cachorro ardido latiu quando passou em frente ao portão. O muro azul continuava descascado.

Ele ficou com medo de que estivesse enlouquecendo. Conversar com uma árvore? Mas o seu conflito era grande e estava consumindo a sua paz. Ele resolveu voltar lá quando retornasse do trabalho, à noite.

“Oi.”

“O bom filho retorna…”

“Desculpa ter saído daquele jeito… É que o Smurf…”

“Não peças desculpas por aquilo que tu tens certeza que o outro jamais entenderá. Não somos responsáveis pela compreensão alheia dos fatos do mundo. Cada um é responsável pelos seus caminhos. É o livre arbítrio. Não justifique os outros.”

“Você é o quê, afinal?”

“Sou o que você quiser que eu seja. É importante que tu saibas quem eu sou para seguir conversando comigo? Ou é importante que conversemos a sua angústia? O copo altera a água que mata a sede? O prato altera o pão que mata a fome?”

“Certo… Estou mal. Quero muito algo, mas os valores sociais não aceitariam nunca. Isso me consome.”

“Angústia é estar em dois lugares incompatíveis ao mesmo tempo. É querer os dois e não conseguir se decidir por nenhum. Tu estás angustiado. Não há decisão sem ganhos. No entanto, não há escolhas sem perdas. Resta decidir ir por onde a perda, que virá, machuque menos. Não mores na indecisão. Morar na indecisão corroi a alma. Quando eras criança e sentia fome, o que fazias? Corrias em casa e tomavas em tuas mãos um pedaço de pão. Comias o pão em público, o que te valeu um apelido. Essa foi a tua dor: o apelido. Mas tu tomaste a decisão de saciar a fome pela qual passavas. Esse foi teu ganho. Podias morrer de fome se fosses poupado do apelido. Mas decidiste. Quando a decisão é tomada e ela te traz paz é porque está certa. Faça-o agora!”

“Decidir doi. Às vezes sangra, dona árvore…”. Achou estranho o “dona árvore”, mas enfim…

“O que não doi no mundo, amigo? A dor renova a vida. A dor é o fim de um ciclo. É preciso morrer o velho para que o novo ocupe o espaço. Lembre-se de uma coisa: não se procure fora de si. Aprenda a buscar as respostas conversando consigo. É sua garantia. Os outros podem de repente não estar mais. Mas você sempre vai estar com você.”

A noite caiu e ele voltou. Havia algo estranho no caminho.  O velho português feridento! Onde estava, se não estava na sua cadeira da observação do mundo, onde sempre estava? A curiosidade lhe tomou as carnes.

“O Português, né? Ele morreu”, disse a vizinha, Dona Déa. Dona Déa era uma senhora paraplégica que se locomovia revezando banquinhos. Sempre odiou o português. Ela o acusava de fofoqueiro, maledicente e coisas assim. Mas dona Déa lhe deu a notícia chorando. O muro entre o ódio e o amor é fino como um muro de vizinhos. Ao mesmo que tempo que divide, também liga.

Ficou triste pelo Português. O cachorro também não latiu. Talvez em respeito. O muro azul ainda descascado.

Naquele fim de semana, olhando o ventilador rodando em falso no teto, ele tinha tomado a sua decisão. Iria definitivamente romper com sua angústia. Iria tomar para si as rédeas de seu caminho e de sua vida. Pagaria os preços em troca da paz de espírito. A Árvore tinha razão. Moisés tinha razão.

Na saída, ao fechar o portão de ferro de sua casa, já via um mundo diferente. Compreendeu naquele momento que os crayons das paisagens da vida ficam guardados dentro da pessoa e é sua paz de espírito que abre a caixa.

“Preciso contar para a Árvore que tomei a decisão”, pensou feliz enquanto caminhava. O cachorro não latiu. Viu o Português sorrir para ele, coçar a ferida e mostrar o polegar em sinal de positivo, apesar da cadeira de macarrão já recolhida.

Ao chegar no campinho, a surpresa. Tapumes com dizeres: “Em breve, mais um empreendimento da Construtora Feitoza”. Um frio lhe percorreu a espinha. A Árvore! Os tapumes iam para além do terreno do campinho. Pegava umas duas casas para cada lado de cada trave. Pegava a casa dos Smurfs. Ela tinha sido vendida, claro!

Como o moleque Passa-fome, num salto, ele pulou o tapume para ver do outro lado um terreno já limpo de tudo. Sem traves, sem árvore, sem memórias. Sentiu uma faca a rasgar-lhe o peito. No lugar da Árvore, apenas um buraco tapado com barro vermelho. Ela fora arrancada dali. Ela fora arrancada dele.

A placa dizia: “Engenheira responsável: Carla Feitoza”. Seu primeiro amor era o seu mais recente ódio. O muro entre o amor e o ódio é fino como um muro de vizinhos. Ao mesmo que tempo que liga, também divide. Ele se sentiu abandonado, engolido pelo mundo, que não respeita histórias. Amaldiçou a cidade pequena em que todo mundo conhecia todo mundo. Um ovo aquilo.

Voltou para a casa, triste, doído. O cachorro latiu. Cachorros sentem. O muro azul ainda descascado. Sem o Português dessa vez. Na porta da casa do Português uma mulher com um bebê no colo. O bebê mamava alheio a tudo.

Nunca mais campinho da sete. A árvore não existia mais. Mas sua decisão estava tomada. No lugar do futebol, um condomínio fechado. Mesmo fechado, ele não bloqueava o vento. Pelo vento ele conversava com a Árvore e, mais importante, aprendeu a conversar consigo. Porque ventos carregam pensamentos. O cachorro ardido fugiu. O muro descascado foi pintado de rosa. Sua paz, que sempre esteve dentro de si, agora descansava à sombra daquela castanholeira.

Paralelas

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Há dias seus olhares se cruzavam. No início, coincidiram. Com o tempo, se buscavam. Agora, se caçavam. Nenhuma palavra. E quem falou que para haver conexões de alma a palavra é necessária? Para estabelecer a conexão, a palavra é dispensável. Para exercê-la, no entanto, é essencial. A cada dia, a sensação do por vir certeiro consumia corpos e mentes. Ambos. Sóis queimavam, um dia atrás do outro, como assumindo para si o calor dos corpos, emanação adiada por caprichos do destino, por desencontros. As noites chegavam e iam, impacientes pela não cumplicidade exercida.

Ele sabia que poderia encontrá-la. Para isso se preparava, mesmo sabendo da inevitabilidade de falhar em todos seus ensaios textuais. Ela se perfumava com uma fragrância tão suave e gostosa que inevitavelmente forçava as pessoas que a sentiam a querer lamber seu corpo, como se fosse possível sorver o sabor que perturbava os sentidos através da língua. Ao esfregar as gotas do perfume em seu corpo, fechava os olhos e imaginava que efeitos aquele cheiro teria nele. O perfume era para ele. Ela era para ele. Ao amassar o cabelo, para secá-lo, imaginava outras mãos percorrendo os embaraços dos fios. Essa era a trama.

Nunca se falaram. Mas se diziam por completo. O destino, o mesmo que os fez esperar longamente, é esperto e sabe o que e como faz. Cruzaram-se, engraçado, em uma festa de aniversário de um filho de uma amiga dele, de um amigo dela. Os olhares se encontraram. Caçaram-se por boa parte da noite. Luan Santana tocando, numa trilha sonora surreal para o tamanho desejo latente. Garçons passando por entre as mesas, quebrando a ligação invisível entre os olhares, bloqueando a conversa sem palavras, os gritos de desejos sem sons.

Ele era e sempre foi tímido. Jamais tomaria a iniciativa. Ela, decidida e audaciosa, sorriu. Era o máximo que se permitia como estratégia de preservação. Falsa preservação. Ele baixou a cabeça. Quando a levantou, ela não estava mais. Parou de rir. Caçou o olhar dela por entre balões, palhaços e homens-aranha. Ficou preso na teia de sua desatenção. Ficou preso na teia dela. A lua, feliz cúmplice, observava tudo, pacientemente.

Ela passa por trás de sua mesa, junto com seu perfume. Ele olha. Ela sorri, num riso largo que força as bochechas a fechar os olhos. Ela o encara. Ele levanta. Ela sorri. Ele anda em sua direção. “Eu preciso dizer que amo” substitui convenientemente Luan Santana no som. Ela, leve, se esvai por entre os convidados. Vai em direção à porta. Ela vai para o seu carro. Ele vai para o seu carro, seguindo o rastro do perfume no ar. Ela dá a partida e ronco do motor frio compete com o frio que lhe percorre o corpo. Ou seria o calor. Agridoce temperatura. Ele faz o mesmo.

O semáforo fecha. Ela passa. Ele passa. Duas multas da fiscalização eletrônica. Assim foi documentado o momento do início. Ela chega em casa. Estaciona em frente. Ele atrás dela, mimetizando o por vir. Ela olha para ele. Ele para ela. A lua para ambos. Ela entra e deixa a porta aberta. Ele entra e abre seu desejo contido. A porta se fecha, decretando o início do jogo, tão anunciado pelo silêncio.

Os olhares que tanto se caçaram. Ali, sozinhos. Ela liga o som. “Explode coração”. Zizi Possi, magnífica transmutação de Gonzaguinha. A música é o diálogo não travado. Eles se aproximam. Sem piscar. Faz parte do jogo. Abraçam-se e começam a dançar. Chega de tentar dissimular e disfarçar o que não dá mais para ocultar. Eles já não podem mais calar já que o brilho dos olhares foi traidor e entregou o que tentaram conter. A respiração ofegante dele em seu ouvido, no ritmo de seu coração acelerado a deixava em transe. O perfume dela em seu nariz o entorpecia. O desejo querendo se derramar. Não dava mais para segurar. O coração a explodir.

Seu rosto colado, num leve movimento à esquerda, coloca seus lábios junto ao ouvido dela. Mais perto. Ele de leve morde a pontinha de sua orelha, tocando-a com a ponta da língua em seguida. Ela inspira o ar descompassadamente, como se perdesse o equilíbrio da respiração. As bochechas se tocam. Ele faz uma espécie de sim com a cabeça, bem lentamente. O primeiro contato de pele. Quer senti-la. Quer tocá-la com seus poros. Sua mão desliza pela costa, explorando a superfície, ainda por cima da blusa. Sua mão sobe por entre as costas e os cabelos longos ondulados. Toca-lhe a nuca. Acaricia com a ponta dos dedos. Massageia. Ela fecha os olhos e suspira. Sua boca fica entreaberta pelo relaxamento natural do corpo. Sua mão esquerda desliza por sobre o rosto dela, como um cego a tatear um rosto desconhecido. A mão vira. Agora é o dorso da mão que percorre o rosto quente.  Ele sente a respiração acelerada nos dedos. A ponta do indicador percorre o contorno dos lábios. Ela movimenta a cabeça lateralmente, como quem diz que seu desejo é ser tocada.

Diana Krall, suave, canta “Let’s fall in love”. Ele toca, boca fechada, seus lábios em seu pescoço, aspirando o cheiro dos longos cabelos encaracolados. Concorda com a música. “Let’s fall in love, why shouldn’t we?” O que impedia? Estavam fazendo seu próprio paraíso. A língua úmida toca seu pescoço. Ela relaxa e aperta o corpo dele contra o seu. No movimento da música, se deixam cair ao tapete, por sobre as almofadas floridas. Delicadamente se olham. Nunca a distância entre seus olhares foi tão curta. Ele sorri. Ela sorri, dando uma piscada em câmera lenta pela sedução. Os lábios, enfim, se tocam. Estão molhados. As línguas, rápidas aprendizes, se buscam, se caçam. Isley Brothers, “Let’s fall in love”. Trilha perfeita.

Um beijo longo, tão esperado, perde a noção do tempo. Como ele pode ser tão igual e tão diferente de como foi sonhado? E os cabelos? Tão macios… O perfume, tão embriagador. A pele. Doce como seda. Macia como mel. O beijo longo cede espaços para pequenas mordidas nos lábios. Dollar, “I need you”. A música diz tudo. Precisavam-se. “Por que demoramos tanto?” se perguntariam se se lembrassem de perguntar algo naquela hora.

Seus lábios descem. Mordem o queixo oferecido. Beijam o pescoço e continuam a descer. Um botão atrapalha sua jornada pelo corpo dela. As mãos vêm socorrer. Ele olha para ela como a comunicar o que vai fazer. Ela sorri. É a senha. Earth, Wind & Fire, “Could it be right?” Mas o que seria certo ou errado ali? Nada de valores. Só o desejo. Puro desejo mútuo de viver o momento. Pagãos cuja religião é o prazer. Carpe diem. A mão esquerda desabotoa o primeiro botão. O segundo. O terceiro. O quarto. Não, a sala era perfeita. O corpo parcialmente descortinado à sua frente. Um minuto de admiração. Led Zeppelin, “Stairway to heaven”. O paraíso a caminho. Sua boca desce até a barriga, que sobe e desce ofegante. Sua língua percorre a região do umbigo, acompanhando a geografia irregular de seu corpo. As mãos, independentes, buscam um leve toque na depressão entre os seios. A palma da mão percorre quase sem tocar o seio esquerdo. Ele sente no meio da mão o rígido mamilo. Toca com polegar. Ela suspira. Ele sobe a cabeça e lhe beija longamente no ritmo do dedilhar da guitarra de Jimmy Page. Ao descer a cabeça, desce também a alça do soutien, liberando a pressão. Sua mão retira a cobertura que separa sua boca e os mamilos que quer e irá beijar.

Djavan, “Oceano”. O dia amanheceu no mar alto da paixão. Sua boca buscou seu peito. Com movimentos leves, a ponta de sua língua circulou o cume do seio diligentemente, como uma criança que cobre uma linha guia desenhada para ela. Várias voltas, como a avisar que vai entrar. Com movimentos lentos, a ponta da língua agora entra em contato direto com a ponta do seio. Ela suspira. Os lábios tomam conta e envolvem toda a área. Um beijo cheio de desejo. Corpos se conhecendo. Ela o empurra levemente, colocando deitado de costas. É sua vez.

Desabotoa um a um os botões da blusa preta que ele veste. Desnuda seu corpo, seu peito. Beija sua barriga. Lambe sua barriga. Seu cabelo escorre e varre o corpo dele. Joe Dassin, “Et Si Tu N’existais Pas”. Um toque francês. Ela desce e beija seu umbigo. Olha cheia de desejos. Morde os lábios. Abre o cinto. Abre o fecho éclair. Retira a calça e deixa-o quase nu. Seu desejo é grande. É visível.  Sua boca beija suas coxas, morde de leve os músculos da perna. Seus dedos percorrem os pelos que se estendem por toda perna, numa gramado negro que convida os pensamentos à diversão. Silêncio. Só a música dos lábios.

Vercilo, “Fênix”. Renasce das cinzas um desejo que ambos criam morto. A aproximação se que dera em pensamento agora se dava na pele, no toque, na respiração descompassada. Quantas foram as inúmeras vezes que suas almas fizeram amor? Quantos infinitos devaneios se permitiram devanear? Scripts mentais de uma realidade aumentada.

Pausa. Um olhar mútuo. Hora de acontecer. Nenhuma palavra. Disseram tudo. “Ordinary People”, John Legend ao fundo. Um amor descomunal entre pessoas comuns. Ela faz seu corpo pesar sobre o dele. Desliza em sua direção. Um beijo molhado com mordidas nos lábios é a senha. Suas mãos a seguram pela cintura, buscando o encaixe. Ela desliza o corpo para trás. E como se tivessem nascido ali, ele a conhece por dentro. Mora nela. Ela suspira forte, perde o compasso da respiração. Seu cabelo longo desliza sobre o rosto dele, varrendo sua face em idas e vindas. Lambidas da onda na areia da praia. O movimento de ida e vinda traz o sabor das idas e vindas de seus pensamentos, de seus momentos, de suas imaginações. Não há lugar melhor do mundo para fazer amor do que nela. Ele curva o corpo, ela sentada sobre ele, seios umedecidos pela boca dançante… Suas coxas o abraçam, o apertam, num clinch perfeito. Ele cai sobre ela. Eles caem sobre o chão. As mãos dela cruzam o cabelo assanhado dele e os dedos apertam seu coro cabeludo. Alceu Valença, “Como Dois Animais”

Em L, ele puxa o corpo dela contra o seu. Ao abraçá-la, sente na nuca o perfume que uma vez sentira e jamais esquecera.  Morde-lhe a nuca. E o encaixe, perfeito, faz os corpos serpentearem juntos em movimentos contrários, mas compassados… Os longos cabelos ofegando sua respiração… A hora… o tempo… aquilo tudo que ambos gostariam de deixar lá fora era exatamente aquilo que mais os limitava. Guilherme Arantes, “Loucas Horas”. Tinham de ir. Odiavam esse verbo. Rasgariam todas as páginas de dicionários que o continham se pudessem. E, depois de silenciarem seus percursos, do início até aquele momento, explodiram. Os músculos do corpo feminino contraídos, a pele arrepiada, tremores e espasmos. Os toques lentos e leves eram agora batidas fortes de corpos. Seguidos tremores. Falsetes. Um olhar… um sorriso… a certeza do momento secreto inesquecível. “Last kiss”, Pearl Jam…

Depois da guerra de corpos consentida, o descanso. Nunca trocaram uma palavra, mas sabiam desde sempre o quanto queriam aquele momento.

“Vai”, ela disse. A primeira e última palavra de todo o enredo.

Ele levantou, vestiu a roupa mal vestida, cinto desabotoado, pisando no calcanhar dos sapatos. Sorriu e se foi. Sem olhar para trás.  Vidas  seguiram pararelas. Vanessa da Mata. “Amado”.

O nome da rosa

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Ele simplesmente falou meu nome. Ele disse “Fernanda” e eu de novo pude sentir a sensação me invadindo. Minhas pernas sob o vestido florido tremeram e minha cabeça começou a girar. Foi assim que eu me apaixonei. Ele ali na minha frente. O objeto do meu amor. Mais velho. Olhos castanhos. Sorriso com covinha. Cabelos com fios grisalhos despontando.

Aquele homem parecia feito para mim. Inteligente sem ser pedante. Carinhoso sem ser piegas. Cheiroso como o perfume das rosas que minha mãe cultiva no jardim de nossa casa. O tom da sua voz era perfeito. Nem alto nem baixo. Falava sem pressa como se o mundo todo parasse para ouvir o que ele tinha a dizer. Às vezes seu jeito de sorrir em silêncio lembrava o meu pai.

Eu o conheci no shopping. Estava escolhendo um perfume para o meu namorado. Ele se aproximou e sugeriu o que eu estava segurando, que, por acaso, era o dele.

– É irresistível. Tenha cuidado.

– Obrigada. Sei me defender.

– Qual seu nome?

– Fernanda.

– Ousada.

– Como assim?

– Seu nome. É teutônico. Significa ousada.

Ele me convidou para um café. Normalmente desconversaria em uma situação daquelas. Mas fui pega pelo visgo no olhar daquele homem. Passamos a tarde conversando na parte externa do shopping. As árvores faziam sombra, mas vez por outra um raio de luz iluminava o seu rosto, reforçando o seu brilho natural. Ele era divertido. Me fazia rir. Não era lindo, mas era bonito. Ele me explicou o que era teutônico. Falou de poesia, de Adélia Prado, de música, de um Hyldon, mas também das mais atuais – sua preferida era The Scientist>; Falou de filosofia, de perfumes e de vinhos. Ele me contou de Fortaleza e de como gostava de sentir o vento soprando no rosto. A impressão que dava era a de que tínhamos de botar uma conversa em dia. Se eu acreditasse em espiritualismo, diria que era um reencontro.

Passamos a nos ver quase diariamente. Ninguém sabia. Nós não combinamos os termos de nossa situação. Eu namorava Cristiano há anos. Uma namoro estável de uns anos. Mas desse homem que me envolveu com seu jeito único em algumas horas eu nada sabia, a não ser que vez por outra viajava para Fortaleza a trabalho. E que gostava do tal Hyldon. Passavámos tardes inteiras juntos. Tive o melhor sexo da minha vida. Ninguém me fez gozar como ele. Seu prazer era me ver sentindo prazer. Tudo muito diferente dos sexos egoístas dos garotos que tive até então. Eu ansiava pelo próximo encontro porque sabia que ele faria coisas diferentes. Ele era meu vício.

Um dia, eu decidi que aquilo tinha de parar. Depois de uma tarde juntos eu disse:

– Acabou. Essa foi a última vez.

– Por quê? – Ele falou sem me olhar.

– Porque não está certo. Eu tenho namorado. Eu não sei nada de você. Nem seu nome eu sei. Essa situação é absurda.

– Está bem.

Ele me abraçou e não rebateu. Eu me frustrei. Fiquei zangada. No fundo, queria que ele tivesse lutado por mim. Mas ele foi compreensivo. Aquilo me afundava mais dentro dele e fazia com que eu quisesse que ele se afundasse cada vez mais dentro de mim. Queria que ele dissesse que aquilo era moralismo, que a gente era perfeito, que não tinha razão para parar. Mas não. Ele só sorriu, mostrou a covinha e me desmontou com seu beijo leve.

– Você não vai contestar?

Ele passou a mão no meu cabelo, tirando uma mecha dos meus olhos e arrumando a bagunça que ele mesmo tinha feito. Sorriu e falou:

– Eu gosto da gente, Fernanda.

Aquele homem sabia que dizer meu nome tinha um efeito entorpecente em mim. Foi a última vez que o vi antes do reencontro.

Nesse meio tempo, fui fiel à minha decisão e ao Cristiano. Mas confesso que morria de saudade dele. Matava um pouco dessa saudade com o perfume do Cris . Eu não presto! Era o corpo dele que eu imaginava sobre o meu quando estava com meu namorado. Cada música que eu ouvia parecia ter sido escrita para mim. As novelas mostravam situações parecidas e era meu rosto que via na cara da atriz e era o rosto dele que eu via na cara do ator.

Pensei em stalkeá-lo no Facebook, mas o absurdo da situação era que eu nem sabia o seu nome. Nunca perguntei. Ele nunca me disse. Acho que isso aumentava o mistério e me dava mais tesão, sei lá. Eu passeava horas nas redes sociais para ver se de repente esbarrava com ele de novo, como na loja de perfumes. Virtualmente já me tiraria as dores. Em vão.

Perdi o interesse pelo Cristiano. Terminamos. Até hoje ele desconfia que tinha outra pessoa. Acho que tinha certeza. Quando a gente conhece o outro, a gente sabe das coisas. Perdi o interesse pelo trabalho de jornalista, minha grande paixão. Perdi o apetite. Sempre que podia, eu ficava sozinha, ouvindo Coldplay. Chorava no banho, as lágrimas salgadas disfarçando-se em água do banho. Não sei se chorava porque maldizia o café aceito ou a saudade que me queimava. As duas coisas, talvez. Tinha insônia. Só me vinha a vontade de estar com aquele homem. Mas ele me fazia mal. Ele era meu vinho. Ele era meu vício. Estava para explodir. Resolvi contar para Alícia.

– Doidice, Fernanda… – Disse ela, me reprovando enquanto mexia no ipad sentada na cama de perna cruzada, feito um buda.

– Não quero esporro. Quero ajuda.

Ela largou o ipad.

– Então o que te impede de ir atrás desse cara? Ligar para ele? Você tá sem namorado. Está aí morta de apaixonada. Assume logo.

– Minha mãe me mata. Ele tem idade para ser meu pai.

– Vai que tua mãe se apaixona por ele…

– Porra, Alícia…

– Desculpa. Foi mal. Se eu fosse tu eu ligava. Eu ligava e dizia “Eu sei o que eu quero. Eu vou te ver”. Eu sou decidida, mana.

– Mas é uma coisa que me faz bem e me faz mal ao mesmo tempo, sabe…

– “Desconsidera o que passou. Põe teu olhar no que será.” Padre Fábio de Melo.

– Vontade monstra de chorar…

– Chorar é uma ótima alternativa. Tá aflita? Chora. Tá com saudade? Chora. Com raiva? Chora! Não vai fazer ninguém voltar, não vai mudar situações, mas que vai aliviar, vai…

Alícia era amigona. Sabia o que dizer, do jeito dela.

Com o tempo as coisas quiseram se ajeitar. Três semanas, desde daquela tarde em que ele não brigou por mim. Comecei a sair de novo, fiquei com uns meninos aí. Mas tudo pirralho. Ah, não dá. Depois dele…

Eu lembro que em uma de nossas tardes eu fiquei olhando ele falar, hipnotizada.

– Sabe, Fernanda. Eu já viajei muito, já li muito, já conheci muitas pessoas. Quanto mais longe eu vou, mais eu percebo a necessidade de ficar dentro de mim. A gente não deve se procurar fora de si, mas aqui dentro. O lugar de descanso da mente é o coração. A mente passa o dia inteiro escutando barulhos, problemas. Mas o que ela quer mesmo é tranquilidade. Ficar com você foi uma das melhores coisas que já me aconteceu. Você me dá tranquilidade. É algo só meu e seu. Basta. Você é uma mulher bonita, doce, deliciosa… – Eu adorava quando ele misturava o bonito com o sujo.

– … você me dá prazer como eu nunca tive. Eu sinto que é verdadeiro. Eu gosto da gente, já disse lhe disse isso. Tenho medo de estragar tudo mais cedo ou mais tarde. Porque as relações gastam.

– A gente tem uma relação? – Provoquei.

– E não tem? – ele sorriu com o canto da boca, mostrando a covinha, daquele jeito de sempre.

Aquilo me deu um frio na barriga, barriga que dez minutos depois estaria toda beijada de novo, com uma língua enrolada no piercing.

– O grande problema de gostar de alguém de verdade é que quanto mais você gosta mais você se vulnerabiliza para essa pessoa. Ela começa a saber tudo de você, seus pontos fortes e fracos. Adquire uma precisão cirúrgica para chegar em você, positiva ou negativamente. É o paradoxo do amor. Por isso evito compromissos mais sérios. Já que a sinceridade sempre marcou a gente, preciso lhe dizer que nosso limite é aqui.

– Nunca te cobrei nada… – E ali ele matou minha fala ensaiada por semanas.

– Eu sei. Mas eu preciso dizer por uma questão de honestidade. Vem cá.

Foi uma tarde maravilhosa.

Aquela era mesmo uma situação estranha. Eu já tinha sido cantada por homens comprometidos, homens casados, marido de amiga até. Mas nunca me envolvi com ninguém enrolado. Até então, só havia transado de forma casual uma vez, para me vingar de um namorado. Sugestão da Alícia, que deu corda. Mas o objeto do meu amor não era enrolado. Quer dizer… eu não sabia nem bem o que ele era. Só sabia que ele o objeto do meu amor. Seria casado? Por que tanto mistério? Por que não falar seu nome? O que me impedia de ir buscar aquele amor para mim? Havia em mim um certo preconceito antecipando outras pessoas quanto à diferença de idade. Quantos anos ele teria? Bem mais que o dobro dos meus 22, certamente. Aquele homem era meu tormento e meu bálsamo. São 02:55 da manhã e eu aqui, de novo, pensando nele.

Leve, me olhei no espelho e gostei do que vi. Prendi o cabelo com um rabo de cavalo e deixei aparecer a tatuagem de borboleta na nuca. Não coloquei batom porque gosto da cor natural dos meus lábios, cor de açaí. Escolhi um vestido de alça, colorido, para variar o preto básico pelo qual sou conhecida. Uma sandália rasteirinha. Minha pauta era uma escola municipal e seu projeto de artesanato com garrafas pet. Gosto de pauta com crianças. Elas são verdadeiras, diferentes dos adultos que semprem mentem e dissimulam. Por que será que falei isso?

No meio do caminho, o telefone tocou. Olho na tela e vejo: ELE. Assim eu o identifiquei no celular. Fiquei sem chão. Não esperava. Tremi. As mãos suaram. O motorista do jornal notou e perguntou:

– Tudo bem aí, Fernanda?

– Tudo, Cabeça. Normal.

– Tem certeza?

– Tenho. Mas me faz um favor. Me deixa no shopping.

– Como assim? E a pauta? O Kraken vai crisar.

– Depois eu falo com o Kraken – Era assim que chamávamos o Márcio, o editor, por razões óbvias.

Esse era o código. Ele ligava, deixava tocar duas vezes e não falava nada. Em meia hora eu estava no shopping, na saída do estacionamento da praça de alimentação. Em uma hora eu estava no paraíso.

Ali estava eu, de pé, ansiosa. Ele simplesmente falou meu nome. Ele disse “Fernanda” e eu de novo pude sentir a sensação me invadindo. Minhas pernas sob o vestido florido tremeram e minha cabeça começou a girar. Ele ali na minha frente. O objeto do meu amor. Mais velho. Olhos castanhos. Cabelos com fios grisalhos despontando.

Que tarde alucinante. Mais do que sexo, fizemos amor. As flores do meu vestidos despetaladas no chão. Rimos. Ele derramou vinho em mim e me bebeu. Ele jogou chantilly em mim e me comeu. Uma, duas, três, perdi as contas de quantas vezes senti meu corpo formigar. Depois de um descanso, ele me disse:

– Quer saber meu nome?

– Não. Dá próxima vez. – Sorri, enigmática, como tinha aprendido com ele.

– Tá bom, Fernanda….

Enquanto ele estava no banheiro, passei um whatsapp para a Alícia contando tudo. Ela só respondeu com \o/.

Ele me deixou perto de casa, como sempre. Lembro do seu rosto iluminado se despedindo. Ele foi e parou o carro. Voltou, abriu o vidro e disse:

– Eu gosto da gente. – Mostrou a covinha.

À noite o telefone tocou. Estava vendo novela. Olhei no visor e lá estava: ELE. Dessa vez, ele deixou tocar. Corri para o quarto e atendi.

– Alô! Fernanda? – Era uma outra voz.

– Sim?

– Aqui quem fala é Azrael Nascimento.

– Sim…

– Desculpa eu ligar assim, mas é que aqui na agenda do celular está escrito “Fernanda, meu amor”. Eu achei que devia.

– Mas o que é?

– É que o dono desse celular sofreu um acidente. Foi atropelado. Fui eu que socorri ele. Sinto muito, moça… mas ele morreu. Como ele se chamava?

Minhas carnes tremeram, mas não de prazer. Um vento, como o de Fortaleza, soprou no meu rosto pela janela da sala. O cheiro de rosas do jardim da mamãe invadiu tudo. Nunca mais vesti vestidos floridos.