Deus
Olhai os lírios do campo
“Tendo Deus terminado no sétimo dia a obra que tinha feito, descansou do seu trabalho”. Assim diz a Bíblia no Gênesis, falando da criação do mundo. Na minha época de catecismo na igreja de Aparecida, havia uma professora catequista cujo nome a memória guardou em algum lugar inacessível. Seu rosto de boneca Emília, no entanto, me é bem nítido. Num daqueles sábados ensolarados, aquela jovem professora me disse que as respostas para todas as nossas perguntas estavam naquele livrinho grosso com um fecho éclair. Aquela frase me pegou de jeito. Naquela época eu achava que as todas as respostas estavam no Manual dos Escoteiros Mirins do Huguinho, Zezinho e Luizinho, sobrinhos do Pato Donald. Das duas uma: ou a Bíblia tinha plagiado o Almanaque Disney ou o Almanaque Disney havia copiado as ideias da Bíblia. Verificando que o livro religioso era mais velho do que o gibi, dei o crédito para Deus, sem no entanto deixar de desejar o Manual, um livro mágico que certamente mexeu com a imaginação de muito guri na década de 70.
Tenho andado meio angustiado e cansado das coisas. Lembrando então da professora catequista, resolvi pegar a minha Bíblia para tentar entender a razão. Fui buscar respostas onde deveriam estar, como prometera a professora. Sendo catequista, claro que ela deveria saber o que estava dizendo. Abri a Bíblia aleatoriamente e fui bater exatamente na passagem que começa esse escrito. Tentei então fazer a ponte: o que Deus queria me dizer com isso? Será que eu tenho que descansar? Descansar do quê, mais especificamente? Fiquei imaginando a época em que a gente podia tirar essas dúvidas diretamente com Deus, como fizeram Moisés e Abraão. “Como assim, Deus?”, “Deus, dá pra explicar melhor esse negócio aí?”, “Ok, Deus, escreve aqui nessas tábuas um resumo do que tens para me dizer e depois a gente conversa para tirar as dúvidas”. Seria mais interessante ouvir a voz de Deus diretamente, sem a necessidade de padres e pastores que a interpretam para nós, sempre a partir de seus anseios e desejos humanos. Fechei os olhos e tentei ouvir a voz de Deus, como Charlton Heston em Os Dez Mandamentos. Queria ser o próprio Pablito Calvo, o menino de Marcelino Pão e Vinho e ficar tête-à-tête com Ele. Como queria falar com Deus, fiz o que manda o Gilberto Gil na música. Apaguei a luz, calei a voz, folguei os nós dos sapatos, dos desejos, dos anseios. E dormi.
Acho que Deus passou, falou e o belezinha aqui dormiu. No entanto, quando acordei já tinha a resposta. A inspiração divina ficou. O Todo – Todo-Poderoso é só para os menos chegados – queria me dizer exatamente o que diz no Gênesis: se até eu que sou Eu descansei, quem és tu, pobre caboquinho pávulo baré, para querer viver numa roda-viva sem descanso, vivendo mais angustiado do que barata de barriga pra cima, zanzando de um lado para o outro, que nem bolacha em boca de velha? Foi aí que Deus se encontrou com Karl Marx.
Marx dizia que é preciso entender como a sociedade se estrutura para poder propor análises e mudanças. Por isso estudou a fundo o capitalismo, elaborando conceitos interessantíssimos que ainda hoje – no capitalismo tardio – vivemos literalmente na pele. Um desses conceitos é a noção de mais-valia. Para quem fugiu das aulas de sociologia, aqui vai um exemplo caricato: um professor recebe xis por uma hora-aula, que é o tempo em que está na sala de aula com seus alunos. Só que para estar lá, ele precisa ler, estudar, preparar a aula, corrigir as provas, etc etc. Esse tempo excedente não é pago pelo patrão. Ele (o patrão) se apropria desse tempo, acumulando esse excedente e transformando em lucro. É a essência do capitalismo: quanto maior a produção e menor o salário, maior será o lucro. “Sim, mas cadê o encontro de Deus com Marx?”, já pergunta um leitor mais ansioso.
A tese de Deus: é preciso trabalhar e fazer bem feito, mas é necessário descansar também, meu filho. A antítese de Marx: no sistema capitalista, parte do trabalho do homem é apropriada pelo outro, companheiro. A síntese do Sérgio: quanto mais eu trabalho, menos eu descanso e mais sou explorado, meu caboco. Alguém vai ficando muito mais rico e eu vou ficando bem mais cansado. Por sua vez, o cansaço atinge não somente o meu corpo, mas também minh’alma, para usar uma contração que tem um charme religioso. Que faço eu? Deixo de trabalhar, então? Deus, o que fazer? Recorri à receita de Gilberto Gil de novo: deitei e esqueci a data, perdi as contas, tive as mãos vazias e pus a alma e o corpo nus. Dormi de novo, na esperança de que a resposta me fosse dada.
Essa técnica do Gil funciona mesmo. Ao acordar, tinha na cabeça a ideia que buscava. De início veio uma frase surrada: “O trabalho é importante e dignifica o homem”. Além disso, é o trabalho que garante o toddynho e o croissant com provolone do papai aqui. Então não posso deixar de trabalhar. A bem da verdade, nem quero. Gosto muito do que faço e já escrevi sobre isso. Mas preciso olhar com mais cuidado para minh’alma. E para dar uma boa guaribada em minh’alma, eu definitivamente preciso descansar. Descansar não significa dormir o dia inteiro. Descansar é esquecer do trabalho, mas lembrando das pequenas grandes coisas da vida. Abri de Bíblia de novo e ela me diz, em Eclesiastes 3, que “há um tempo para cada coisa na face da terra. Comer, beber e gozar do fruto do trabalho é um dom de Deus”. Juntando Marx e Deus de novo, decidi que vou trabalhar somente nos meus dias e horários de trabalho (essa é minha colaboração contra o capitalismo, companheiro professor), portanto fazendo o meu trabalho ser mais bem pago. Vou usar a experiência para tentar fazer mais em menos tempo. No tempo da mais-valia, apropriado por meu patrão, vou comer, beber e gozar o fruto de minha lida do horário trabalhado e efetivamente pago.
Portanto, já decretei: não mais trabalho aos domingos e feriados. Nesses dias, quero encontrar a minha família, rir com meus irmãos, espairecer com meus amigos, cafungar a minha mulher. De segunda a sábado, tudo bem, batente. Mas domingos e feriados são dias de descanso. Descanso junto à família, aos pais, irmãos, amigos, cônjuge, gato, o escambau a quatro que não seja ligado ao trabalho. Chega de ouvir minha mãe reclamando que ando sumido, meu pai mandando recado dizendo que está com saudade, como se vivêssemos em países distantes. Esse tempo precisa ser recuperado. É tempo para rir, se divertir, ver um filme de Chaplin, ouvir a coleção inteira do John Lennon, tomar café da manhã na estrada, jogar boliche, ler Florbela Espanca, coçar o saco, que seja. É tempo de tomar um banho na piscina do condomínio caro que pago e raramente uso porque tenho que trabalhar em casa. Isso já me rendeu até uma bronca do Roberto, o porteiro do meu prédio: “Seu Sérgio, aproveite seu patrimônio. Vá pra piscina, seu Sérgio…” Agora decidi mesmo: quero esquecer completamente as pequenezas e picuinhas do trabalho. De preferência de bubuia na piscina. Quero ler um livro sem culpa pela pilha de trabalhos para corrigir, sem ficar angustiado pela prova que ainda tenho que elaborar ou por aquele parecer sobre aquele processo que eu preciso dar.
Arrisco dizer que esse mundo véio sem porteira seria bem melhor se as pessoas ouvissem um pouco mais a Deus e a Marx. A Neila, a menina que limpa e arruma aqui em casa, me disse sobre o assunto em questão: “Seu Sérgio, o trabalho existe para nos ajudar a viver. Viver para o trabalho é inverter a ordem das coisas. É uma questão vetorial. Se nós não invertêssemos as coisas, não precisaríamos tanto de analistas e psicólogos, de Dorflexes e Lexotans. Não reclamaríamos tanto de falta de tempo para conversar com nossos queridos e seriamos certamente menos estressados. Teríamos filhos mais bem educados, seríamos menos neuróticos e mais tolerantes. Teríamos uma vida qualitativamente muito melhor e menos belicosa”. Pare aí e pense, leitor querido: a Neila tem ou não tem razão? Você trabalha para viver ou vive para trabalhar? Você permite que seu patrão se aproprie do tempo em que você deveria estar com sua família para que ele possa cada vez mais usufruir a dele? É justo isso? Você entra mesmo nesse jogo capitalista de corpo e alma? Avalie seriamente essa questão, reflita e me mande um e-mail. Aposto minha coleção de corujas que a maioria das pessoas vai reconhecer que veste demais da conta a camisa da empresa para a qual trabalha, despindo necessariamente para isso a camisa de outros times, entre as quais a do família e amigos.
Para mim, a mensagem foi clara como a luz do sol, clareira luminosa na escuridão. Trabalho é trabalho. Deve ser bem feito e caprichado. Descanso é descanso. Deve ser bem feito e caprichado. Agora é trabalhar isso na minha cabeça. Melhor dizendo: melhor é descansar minha cabeça do excesso de trabalho. Desligar. Puxar momentaneamente o plugue. E olhar os lírios do campo. Para entender como lidar melhor com o trabalho em uma sociedade como a nossa, sinto a necessidade de reler Marx. Para lidar com o cansaço d’alma, nada como ouvir a voz silenciosa de Deus. Ainda tem gente que acha que esses dois não combinam. Bom, vamos dar um desconto. Certamente essas pessoas devem estar estressadas e já não veem as coisas tão facilmente. Estão precisando descansar. Amém, companheiro.
22 de abril de 2004
Lá na praia eu deixei o meu barco…
Texto escrito para o Portal Amazônia
Domingo passado eu iria começar a dar aulas em um curso de pós-graduação. É, domingo. Acordei com minha aula preparada, como sempre faço, e fui dar uma olhada na Internet, com sempre faço também. Tuitei que estava precisando ir à igreja. E fui ganhar o pão.
Chegando à Instituição, havia outro professor esperando para dar aulas para a mesma turma. Houve algum ruído na comunicação e dois professores foram convidados a iniciar naquele dia. Como o outro professor tinha sido meu aluno, ficamos conversando antes da chegada do coordenador, decidimos que ele iniciaria e eu só começaria depois da sua disciplina. O relógio marcava 8:10 da manhã de um domingo. Bateu um estalo: por que não ir à missa?
Estava perto da igreja de Nossa Senhora Aparecida. Foi nessa igreja que meu sujeito religioso fez-se gente. Ali eu fiz catequese, a primeira-comunhão. Ali eu ia às missas das crianças do domingo de manhã. Ali eu aprendi a amar o próximo e me dei conta de que esse universo é muito perfeito para ser obra do acaso. Naquela igreja, embora morasse em outro bairro, está registrada minha vida religiosa de épocas mais intensas. Pausa. Meu perfume de rosas chegou forte. Sua benção, vó. Falar nisso, foi naquela a igreja em que minha vó viveu sua vida inteira.
Entrei, peguei o boletim e os cânticos na caixinha lateral, como fizera milhares de vezes há tempos idos. Sentei. Logo, uma mão macia e conhecida tocou-me o ombro e os cabelos. Era minha mãe, que estava na missa. Como sempre esteve em todas aquelas de que participei. Assistimos à missa juntos. Memórias vieram num fluxo transbordante.
Tive a nítida impressão de que as pilastras da Igreja conversavam entre si. E eu era o assunto. Pilastras que viram um menino descobrir um mundo. Pilastras que testemunharam a construção de meu templo individual. Nossa Senhora e Jesus, nos quadros que ficam de cada lado do altar, os mesmos de minha infância, acenaram e sorriam para mim como se acena e se sorri para um velho amigo. Eu juro. Naquela missa das crianças, com o harmônio ecoando e o coral de crianças cantando, eu me reencontrei comigo criança, sem as angústias e dores da adulteza. Eu comunguei, no sentido etimológico da palavra: comunicar-se, compartilhar. E no religioso também. Limpeza.
E já que estamos falando de religião e fé, confesso de público que tenho sido hoje bem mais cristão do que católico, ainda que assim me identifique ao ser indagado. E confesso que percebo, aos 41, a importância de tantos anos na igreja. Foi ela que me deu alguns dos parâmetros e valores fundamentais para o mundo, que hoje são pilastras da minha subjetividade. Foi a igreja que me ensinou a querer o bem às pessoas e ao mundo. Com a roda-viva, pode-se até perder assiduidade física, mas jamais se perde o valor incrustado na alma. Pode-se até entrar no forte jogo do dia-a-dia, mas quem tem formação religiosa não se esquece nunca da finitude. A leitura da missa falava sobre isso. De que vale tanta correria e acúmulo se no fim dos trabalhos tudo se deixa?
Em “A Psicanálise e o Religioso”, Freud dizia que a religião é para os desamparados. Ele tem razão. Achar que não precisamos de amparo frente à fragilidade, à vulnerabilidade e à efemeridade humanas é de uma arrogância sem tamanho. Alguém me perguntou dia desses no Formspring: como você lida com o discurso cristão presente em seus textos? Eu nunca tinha parado para pensar em como o discurso cristão está presente em meus textos. E está. Porque está na minha vida. É a isso que nós, analistas do discurso, chamamos de Discurso Fundador: aquele que é fundação de nossa personalidade, pilastra de nosso edifício semântico. Pilastras das boas. Como as da Igreja de Aparecida.
Meu desejo matinal foi atendido: fui à igreja. E passei a semana com o cântico da comunhão na cabeça: “Senhor, tu me olhastes nos olhos. A sorrir, pronunciaste meu nome. Lá na praia eu larguei o meu barco. Junto a ti, buscarei outro mar…”. É. Esse universo é muito perfeito para ser obra do acaso. Meu curso só começará em outubro. Fui ensinar naquele dia. Quem aprendeu fui eu. Fui ganhar o pão num domingo. E ganhei.
Onde Deus possa me ouvir
Texto escrito para o portal D24AM.
Sabe o que eu queria agora, meu bem?/Sair, chegar lá fora e encontrar alguém/que não me dissesse nada/não me perguntasse nada também./Que me oferecesse um colo ou um ombro/onde eu desaguasse todo desengano/Mas a vida anda louca,/as pessoas andam tristes,/meus amigos são amigos de ninguém./Sabe o que eu mais quero agora, meu amor?/ Morar no interior do meu interior/Pra entender porque se agridem,/se empurram pro abismo,/se debatem, se combatem sem saber…/Meu amor, deixa eu chorar até cansar/me leve pra qualquer lugar/aonde Deus possa me ouvir/Minha dor, eu não consigo compreender/eu quero algo pra beber/me deixe aqui, pode sair./Adeus.
Há horas em que as horas se arrastam. Há dias em que tudo o que queremos é encontrar alguém que não nos diga nada, que só nos ofereça um colo, um ombro, um cafuné e seu olhar de colchão. Alguém que saiba quando calar para que nossos silêncios falem. Alguém cuja presença seja a estaca que segure a nossa alma, completamente tomada de hera dos fatos pesados da vida. São dias sem sol em que a sombra certa é tudo que desejamos que repousasse sobre nossas cabeças.
Todos nós, vez por outra, precisamos desaguar nossos desenganos. Queremos alguém que seja o receptáculo solícito de nossas angústias, tristezas e aflições. Mas quem? Por onde andará essa pessoa, com o dom e a sensibilidade de saber que a desculpa mais esfarrapada para deixar de viver é o máximo que conseguimos criar e, mesmo assim, ainda acredita em nós? Olhamos para os lados e o que vemos são pessoas e mais pessoas. Elas nos acompanham e no meio delas somos o mais sozinho ser do universo. Porque as pessoas andam tristes e na sua tristeza os amigos tornam-se amigos de ninguém.
A vida fica louca e sai do eixo. A vida parece que tem vida própria e independente de nós. Ficamos a seu reboque. Pagando com a alma se preciso for, queremos comprar a primeira passagem para o interior de nosso interior. Lá, talvez, a contemplação do silêncio ajude a entender porque as pessoas fazem o que fazem, por que tanto desentendimento em tempos de linguagem farta, por que se empurram para os abismos numa beligerância sem nexo, por que se debatem gratuitamente e se combatem com afinco sem saber.
Há momentos da vida em que queremos chorar até cansar. A esperança é que aquela sensação boa de depois de um choro venha enxaguar a sujeira que se acumula na casa desarrumada de nossa alma. Que ela faça uma faxina de quem tem TOC e devolva a cada coisa sua simetria perfeita no esquadro da existência. Porque está tudo bagunçado, está tudo confuso. Não achamos nem a porta para fugir. Ou até achamos, não temos mesmo é força.
Nossa via-crúcis particular não termina. Que droga! Por que não nos penduram logo numa cruz para acabar com esse tormento que martela de forma chinesa nas veias, no corpo, na mente? Quantas estações teremos que passar aguentando chibatadas e açoites que parecem ter combinado o tempo sincronizado para acertar as nossas costas?
Há tempos em que parece que estamos num casulo de Dante. Nem Deus consegue nos ouvir. A Ele, que ouve até nossos silêncios, lhe escapamos . E cadê a pessoa para nos carregar no colo até um lugar onde Ele possa sentir nossa respiração? Porque Lhe basta isso para olhar para nossas inquietudes e apaziguá-las…
A vontade nesses dias chuvosos é de se deixa encharcar. Sumir dos olhos de todos, buscar escapes, chutar o balde. Dar adeus a quem mais nos quer bem. E a quem definitivamente não nos quer bem. Mas não é sábio.
A vida de todo mundo é assim. Eu já vi fogo e eu já vi chuva. Eu já vivi dias chuvosos que pensei que jamais terminariam. Talvez vocês, meus dezessete leitores, não saibam, mas já cheguei muito perto, mas muito perto de renunciar à vida, quando estive afogado em certo dilúvio que me inundou a existência.
Depois o sol abriu. E com ele as cores do arco-íris. Porque é assim. A vida de todo mundo é assim. Vivemos os céus mais azuis e os infernos mais quentes intercalando-se na calada da vida. Vivemos a doçura mais deliciosa e o amargor do fel de ocasiões que chegam em bando, em gangue, para nos roubar a paz e nos estuprar a tranquilidade.
Ao descrever um momento acre da vida, a música de Vander Lee na belíssima voz de Gal Costa nos lembra, por tabela, que há momentos felizes, momentos de sorrisos fartos. A vida é agridoce. Se entendermos que é assim, talvez soframos menos. Talvez. Em minha felicidade, entendo a crítica de que sou suspeito para falar de tristeza.
Anjos eficientes
Um belo dia um grupo de anjos-crianças dirigiu-se a Deus. Estavam preocupados com o mundo e seus habitantes. Deus explicou a eles que havia dado ao homem livre arbítrio e que, portanto, ele era responsável por seus atos e por levar o mundo por caminhos não tão promissores. Preocupados, os anjos fizeram uma proposta a Deus. Como se sabe, Ele ama a todos os seus filhos e mais especialmente as crianças.
O primeiro anjo disse: “Senhor, os homens na Terra estão precisando ver melhor as coisas. Não conseguem vislumbrar que toda causa gera uma conseqüência. Vou dar a eles, Senhor, a minha visão para que possam enxergar a necessidade de cuidar uns dos outros e do planeta”, disse.
“Estão assim porque não dialogam mais”, afirmou o segundo anjo. “Falam de si, mas são incapazes de ouvir o outro. Pensam no individual e esquecem que ninguém vive só. Pois dou a eles, Senhor, a minha audição. Que com ela os homens escutem o próximo e as vozes da natureza com o coração”.
“Deixa eu lhes ajudar, irmãozinhos, doando aos homens a minha fala. Quem sabe possam conversar mais e superar as dificuldades entre os diferentes. Quero que conversem e se entendam. Permita, Pai, que eu lhes doe a linguagem perfeita que sai de minha boca”..
Um quarto anjo voou para perto e disse: “Além de não ver, não ouvir e não dialogar, os homens estão se arriscando em caminhos tortuosos. Suas pernas os levam por duvidosas trilhas nas bifurcações da vida, muito desgastada pelo corre-corre desenfreado. Consintais, Deus, que eu lhes ofereça as minhas pernas, para que com pernas novas os seus passos possam caminhar por caminhos mais primaveris”.
“Os pobres homens estão com a sensibilidade exposta”, interveio um anjo que acompanhava atento a conversa. “Posso entregar-lhes minhas fibras para que reforcem seu sistema nervoso, protegendo-se assim dos males de seu desequilíbrio. Isso, claro, se o Senhor me facultar fazê-lo”. Deus a tudo ouvia.
Um sexto anjo pronunciou: “Não poderia me furtar a ajudar a melhorar o mundo. Quero entender os homens. Deixe-me, Pai Grandioso, buscar na Terra um cromossomo para ver se melhor compreendo no DNA da humanidade o porquê de tanta guerra, de tanta discórdia”.
O sétimo falou: “Eu também quero ajudar. Preocupa-me o uso descuidado do cérebro humano. O homem já não raciocina direito. Como minha parte, Senhor, quero lhes doar a capacidade dinâmica de meu cérebro. Quem sabe assim as pessoas ajam mais fraternalmente”.
E assim foi: uma multidão de anjos-crianças juntou-se em volta de Deus, cada um com sua oferta, que de tão generosa e altruísta foi prontamente aceita por Ele.
Para quem não sabe, os anjos-crianças vêm ao mundo em forma de bebês. Dos que fizeram a proposta a Deus, o primeiro nasceu cego. O segundo, surdo. O terceiro, disléxico. O quarto, com pernas mais curtas. O quinto, com esclerose múltipla. O sexto, com síndrome de Down. O sétimo, com paralisia cerebral. O oitavo e nono, que não aparecem na história, com autismo e com síndrome de Williams, respectivamente.
Assim, cada criança que nasce com o que os humanos chamam de deficiência é a mais pura manifestação da doação dos anjos por um mundo melhor. Na sua sabedoria, Deus concedeu aos pequenos uma benção em troca de sua entrega: determinou que esses anjos nascessem em famílias especiais. Essas famílias sabem, cada uma delas, do que estou falando. Deus sempre dá um jeito de lhes contar a história de seus anjos eficientes.
Oração de pai pra Pai
Pai nosso que estás nos céus, quem Vos fala é um pai de filhas que estão na terra.
Que santificado seja o vosso nome e santo também sejam o meu nome e a imagem que minhas filhas construam de mim, por minhas ações, atos e também omissões. Sim, às vezes é preciso se omitir de certas práticas nefastas que se nos apresentam no enredo da vida.
Pai, que venha a mim o Vosso reino e que no meu pequeno reino, aqui nessa terra, eu consiga à imagem e semelhança do Vosso, construir castelos de respeito, com fossos para nos separar do mal, do vil, do indigno, do sórdido. E que esse meu pequeno reino seja um reino onde habitem crianças de alegria e júbilo, de paz no coração e de mente sadia. Que nos prados e campinas dessas terras minhas crianças genuinamente fiquem felizes com a felicidade alheia. Crianças que colham flores, que riam com pássaros, que brinquem com as formas das nuvens e, sobretudo, que façam o bem.
Que seja, Pai, feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu. Que essa vontade Vossa possa guiar-me na terra quando meu livre arbítrio fraquejar, quando minha pequenez humana engasgar nos desafios da vida. Minhas filhas precisam de mim. Os filhos precisam do Pai, bem sabeis. Quando eu chegar ao céu, quero olhar para baixo e para trás na certeza de que nossas vontades coincidiram ao máximo. Vivo dia a dia a esperança que minhas meninas vivam isso. Quero a certeza para segurar as mãos de minhas filhas ao atravessar a rua da vida com que Vós segurais a mão desse Vosso filho. Nesse aperto de mão, se apertam também os laços de amor, de cuidado, de preocupação, de afeto.
O pão nosso de cada dia dai hoje. E dai permitindo que eu vá atrás, que eu o busque. Permita, Pai, que o faça no limpo, respeitando outros pais que igualmente buscam o seu pão de cada dia. Para isso, peço mais: além do pão, dê-me saúde, serenidade, paciência e altruísmo genuíno, sem os quais a jornada diária pelo trigo que alimenta é muito mais árdua.
Perdoai minhas ofensas, assim como eu perdoo a quem me tem ofendido. E seja complacente nesse pedido. Pois se para Vós que sois Pai maiúsculo é fácil perdoar, para mim que sou pai minúsculo é laborioso por vezes desendurecer o coração com os outros, quando esses outros são pequenos, mesquinhos, invejosos, cruéis. Perdoai-me quando não conseguir perdoar. Sei que o perdão prolonga a vida ao expelir a mágoa para fora da alma. Então, Pai, que o perdão seja o desjejum diário de minhas filhas.
Não me deixeis cair em tentação. A tentação do desânimo, a tentação da desistência, a tentação da impaciência, a tentação da desatenção, a tentação da naturalização dos afetos. Minhas filhas compõem-se de cada gesto meu digerido por suas existências. A atenção que não lhes dou é preenchida com outra coisa. O cansaço que me impede de com elas brincar lhes rouba a brita do alicerce da alegria em família. A impaciência no trato com duas pequenas coisinhas, frágeis e dependentes, experimentando e descobrindo um mundo tão complexo, sinaliza uma falta que não posso deixar acontecer. Eu sou responsável por parte do sentido que o mundo terá para elas. Poupe-me das tentações, Pai, para que esses sentidos sejam os melhores no que depender de mim.
E livrai-me do mal. Livrai-me do mal da dor da impotência diante das doenças. Livrai-me do mal da dor do desrespeito mútuo. Livrai-me do mal da dor de falhar como pai. Afasta de mim tudo aquilo que tire das minhas filhas seus lindos e iluminados sorriso de suas bocas. Tudo aquilo que lhes façam se sentir menos gente nesse mundo em que o humanismo é visto como besteira bolorenta. Que o mal se afaste e o bem prevaleça. É o que eu, pobre pai aprendiz, Vos pede, com fé e de todo o coração. Com a certeza de um filho que terá seu pedido atendido. Assim seja. Amém.
Marina doente…
Ter uma filha doente nos torna mais crentes em Deus. A gente reaprende a rezar. Por falar em Deus, tem uma falha no seu projeto de pai: a incapacidade de transferência de doenças. Todo pai ou mãe deveria ter o direito de dizer “passa pra mim” e ver, feliz pela recém-adquirida enfermidade, seus amores em forma de gente correndo, rindo e espalhando brinquedos pela sala. Continuo rezando pela melhora da minha caçula, a minha alegria, a minha Marina morena.