valores

Flores no asfalto

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Foi Gandhi que disse: “Ninguém pode me magoar sem minha permissão”. Essa é uma verdade que aprendemos com a vida. A partir de determinada fase, começa-se a alegar a idade para justificar fazer certas coisas e deixar de fazer outras sem culpa. É uma espécie de salvo-conduto dado aos mais velhos. Um tipo de compensação pela perda do viço juvenil. O tempo é, de fato, um bom professor. Nossas rugas estão sempre a postos para lembrar que por determinado caminho não dá.

Tenho pensado muito nos ensinamentos do tempo. Uns fios brancos resolveram aparecer na minha cabeça aos 45 anos. Eles não vieram à toa, certamente. Penso que desses ensinamentos, o maior deles, que tem mudado minha vida de forma qualitativa, é o exercício da serenidade. Não posso mudar o mundo e suas opiniões. São bilhões de pessoas com zilhões de opiniões. Com as tecnologias de informação e suas redes sociais então, essas opiniões ganham o mundo com uma fertilidade nordestina. Assim, é imensa a possibilidade de você ler algo que lhe ofenda, não lhe agrade, lhe incomode, lhe dê náuseas. Dá vontade de responder a tudo e a todos, com veemência e contundência. É quando entra a serenidade lembrando que as pessoas têm o direito de ter suas opiniões e de manifestá-las. Verdade. Eu ainda prefiro um mundo em que temos o trabalho de superar as diferenças do que um em que optamos pelo caminho mais fácil de suprimir o que não nos é agradável, seja essa supressão pela força física ou simbólica. Aqui retomo Gandhi.

Se eu não posso mudar as opiniões que me machucam ou me desconfortam, eu posso mudar o fato de permitir que elas me machuquem e me atinjam. É esse o meu campo de ação.  Por conta da multiplicação de opiniões, que são bem-vindas porque a diversidade enriquece, somos bombardeados com todo tipo de informação. São informações úteis, inúteis, alegres, tristes, ácidas, simpáticas, doces, amargas, sinceras, chatas. Eu, no entanto, me surpreendo com as pessoas que fazem questão de focar na parte ruim dos adjetivos. Fui checar.

A título de experiência, fiz um acompanhamento dos posts do Facebook da minha linha do tempo. Nada científico. Mas constatei assustado que muita gente resmunga de tudo, fazendo da acidez e da amargura seu alimento diário. Você pode dizer: “Ain, mas é você que escolhe seus amigos no Face”. Isso. É justamente aqui que eu queria chegar. Qualquer pessoa tem o direito de dizer e pensar o que bem entender. Longe de mim proibi-la de falar ou de se manifestar. Até porque não tenho nem direito nem poder sobre isso. Mas, aí sim, eu tenho direito e tenho o poder de blindar minha mente dessa gente indesejável, ruim, escrota, que só vai me fazer mal. A serenidade a que me referi tem me ajudado a escolher melhor em que papo entrar e com quem interagir. A briga nem sempre é boa e estou aprendendo a só brigar a boa briga. Por conta disso, estou desamigando das redes digitais e da vida gente chata, ranzinza, vampira, daquelas pessoas que chegam e trazem um bafo quente que nos sufoca. Estou bloqueando das minhas relações os incômodos, os sem-limite, os sem-noção, os desagradáveis e os deselegantes, estes em homenagem a Sandra Annenberg. OK, leitor amigo. Nem todo mundo é assim o tempo todo. Os que são chatos part-time eu não desamigo nem bloqueio, mas ignoro solenemente provocações, comentários e posts que vão me puxar para o olho de um furação de tristeza, de desamor, de terra arrasada, de ranzinzice sem fim.

Fato é que cansei de ficar num cabo-de-guerra sobre um assunto em que o objetivo da pessoa não é discutir o assunto, mas sim brincar de cabo-de-guerra. Demorei para sacar isso, mas saquei. O tempo me deu o toque. Nada como a pátina da idade e estou adorando meus cabelos grisalhos.

Eu não quero que os chatos deixem de ser chatos. Por favor, que os chatos me entendam. Chatos são necessários para o equilíbrio do ecossistema. Quer ser chato? Vá fundo! Todo chato deve ter suas motivações, conscientes ou não. A chatice é seu escape psíquico. O que estou advogando é que eu não preciso conviver com essa gente, esses gafanhotos da paz alheia. Já há algum tempo, decidi me blindar dessa amargura toda, desse negativismo atávico, dessas reclamações recorrentes das mesmas bocas e mesmas teclas. Essas pessoas proliferam que nem Gremlins porque no mundo de hoje é mais fácil ser chato do que ser legal. Deve ser porque esquecer a dor é mais difícil do que lembrar a paz. A felicidade não deixa cicatrizes, como a tristeza. Há gente que adora lamber as feridas e não as deixar sarar. Escolhas.

Andando hoje em frente do meu condomínio, vi uma flor que ousou nascer no asfalto. Fiquei pensando por um minuto na ousadia. E na bela metáfora. O mundo é asfalto. Flores ousam brotar aqui e ali, desafiando o que se impõe como prevalente. Para onde olhar? Há pessoas que só veem os buracos e as lombadas do asfalto. Os seus olhos são cegos para o resto, para o desvio, para a deriva que se oferece. Saramago, sobre a cegueira: “É que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos”. Estou na fase de buscar flores e de ignorar solenemente o asfalto quente, áspero e esburacado. Ando cansado de rolar e ralar no asfalto da vida. Pode ser coisa da idade? Pode ser. Topo dividir sorrisos e gozos. Amarguras e choramingos, eu passo. Sem culpa. Estou ficando velho. Eu posso. Tenho o salvo-conduto. Porque ninguém pode me magoar sem minha permissão. Nem calar a flor que nasce teimosa no asfalto quente.

 

PS: Durante a escrita deste texto, recebi a triste notícia de que um tio da minha mulher morreu. A vida é tão efêmera. E tanta gente perdendo tempo com desamor e futrica.

Peregrinações: a lei, a forma, o acontecimento

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I’m looking for the face I had before the world was made.
Yeats

Esse é um texto pessoal, escrito mais para mim do que para os outros. Leia se quiser.

Um dos livros que mais me influenciou dentre os muitos que li é Peregrinações, de Jean-François Lyotard. Volta e meia o pego na estante e o começo a ler de novo. O que me fascina no livro é sua discussão sobre sua trajetória de vida, considerando a lei, a forma e o acontecimento. Fiquei pensando na minha trajetória sob as perpectivas de Lyotard.

A lei sempre me foi cara. Não falo aqui da lei jurídica apenas, mas incluo no sentido o juridismo, a lei não escrita. Sempre fui um cara muito “certinho”, para usar um termo mais corriqueiro. Um bom filho, um bom aluno, um bom irmão, um bom amigo, um bom professor, um bom pai. O adjetivo bom me persegue. Não pense você que isso é um autoelogio. Reconheço sem falsa modéstias algumas qualidades que tenho, mas sei também dos limites e defeitos que me habitam. É que desses poucos sabem, dando a impressão de que o bom domina. Mas ser adjetivado nunca é bom, nem mesmo quando o adjetivo é bom. Quem mata um leão por dia sofre muito quando deixa escapar uma tartaruga num instante relapso.

Sinto falta de não ter sido mais fora-da-lei. Nunca sumi sem deixar notícias, nunca tomei um porre, nunca namorei sem ser a sério – a não ser numa fase bem galinha em que curti as ficações por ordem médica para recompor a autoestima depois de ter um casamento arrancado de mim por uma escolha fora-da-lei da outra parte. Aliás, tendo em vista o peso da lei, você que me lê deve imaginar o quanto sofri com isso. Grosso modo, nunca fui irresponsável. Sim, estou me ressentindo de não ter sido porra-louca. A lei sempre me foi cara. Eu sempre lhe fui subserviente.

A forma. A forma sempre foi subjugada à lei na minha trajetória. O estético sempre se definiu pelo que a conjuntura determinava. Apesar de ser um admirador explícito das rupturas, quase nunca me permiti ser seu sujeito. Sou um conservador. Não costumo me permitir experiências que não me são conhecidas. Não gosto de provar pratos novos, prefiro lugares e gente que já conheço. Morro de medo quando a lei me impõe novas formas. Mas como de costume, sempre obedeço. Apesar de ser curioso, a boa forma para mim é aquela que não apavora a mente.

Viver na lei e dentro de formas controláveis é, no entanto, impossível. Porque a vida tem o acontecimento. O acontecimento, um rebelde, não se permite controlar. Chega sem pedir licença, muda a nossa vida e depois convida a rir ou chorar. Foi o acontecimento que me levou a casar três vezes. Foi o acontecimento que encerrou meu primeiro casamento por um excesso de religião que ironicamente desligou o diálogo do casal. Foi o acontecimento caprichoso que me levou a conhecer minha mulher atual. Foi o acontecimento que me trouxe inesperadamente a minha filha caçula. Foi o acontecimento que me fez decidir fazer um concurso para professor da universidade no último dia de inscrição, no último minuto. O acontecimento é a falha na matrix. O acontecimento é o outro da lei, desafiando-a com novas formas, com novas trilhas, com novos sentidos.

Lei, forma, acontecimento. O que tenho percebido é que com o tempo, com a idade, tenho me flexibilizado quanto às três coisas. Isso tem seus motivos.

Ando muito triste com algumas escolhas que a lei me impôs. Estudei muito. Muito mesmo. Sempre gostei de estudar. Fiz mestrado. Fiz um doutorado na melhor universidade do país na minha área com a orientadora mais fodona na minha área. Tirei A em todas as disciplinas do curso. Estudar foi um acerto. Mas a forma foi errada. Fui ser professor universitário. Confesso que cada vez mais só gosto disso pela metade. Gosto da parte do trabalho, das aulas, das pesquisas, de escrever livros e artigos. Mas odeio o meu salário, me sinto humilhado ganhando o que ganho depois de estar no topo da titulação e no quase no topo da carreira , com vinte anos de universidade. Isso tem me deixado desgostoso, sem tesão acadêmico. Qualquer início de carreira de nível médio na Receita Federal ganha mais do que eu, com tudo isso. A lei não me foi mãe, me levando à forma equivocada, com grande parcela de (ir)responsabilidade minha, decerto.

Você que me lê pode estar dizendo: “Não está satisfeito? Muda!” E eu vou ser bem sincero: não dá. A essa altura do campeonato, a forma já fincou estacas. Passei batido. Tenho virado noites pensando em alternativas de dar uma boa qualidade de vida para a minha família sem me deixar abater pelos números do meu contracheque. O problema de ser aparentemente bom e forte o tempo todo faz as pessoas se desacostumarem de que a gente também fraqueja. Meus fraquejos são solitários. Não é por falta de ombros, não. Mas por escolha de não levar coisas ruins para os que eu gosto. Mas eu choro, fico acordando olhando o horizonte pela janela da cozinha, dirijo me perguntado por que a lei me trouxe essa forma. Tenho olhado a minha estante, cheia de livros, e me perguntado reiteradas vezes, com certa angústia ressentida: para que tudo isso?

A decepção com a lei e com a forma tem me levado a ser mais condescendente com o acontecimento. Estou menos exigente comigo mesmo e com os outros. Às vezes até displicente. Ando me permitindo fazer coisas pelas quais o eu de dez anos atrás me condenaria ao fogo eterno. Tenho apreciado novas formas, novos gostos, novas estéticas. Numa apropriação do Zeca Pagodinho com licença poética, eu diria que estou deixando o acontecimento me levar. Isso é bom. Isso é ruim. Quando a alma se acomoda, ela se apequena. É inevitável lembrar Pessoa. As coisas parecem não valer a pena às vezes. Ecos da boca torta da lei.

A lei vem e nos sugere as formas. O acontecimento vem e embaralha tudo. A ordem e a desordem. É ilusão acreditar que podemos programar a vida. A desordem é desejável para a própria existência e valorização da ordem. O que não está e não é também faz parte. A pausa do silêncio é que faz a música. A ruptura, filha do acontecimento, deve ser recebida com tapete vermelho, sem culpas ou remorsos por alterar formas conhecidas. Sem espaço para o acontecimento, represamos nossas vontades na lei. Presos à lei, as formas enferrujam. Formas estanques levam a almas mofadas. Tudo é episódico. Como sabê-lo sem vivê-lo? A lei é inimiga da ousadia, do deslimite e da felicidade. Lyotard diz:

“Declaramo-nos filósofos ou escritores, devemo-nos confessar impostores. Não existe pensar verdadeiro que o sentido de sua indignidade não escolte. A única maneira de sair desse atoleiro, pelo menos em parte, é exibir o inelutável. (…) De modo que o que ameaça o trabalho de pensar (ou de escrever) não é ele permanecer episódico, é ele fingir-se completo”.

Vou vivendo uma incompletude a cada dia, procurando o rosto que eu tinha antes do mundo ser criado, como disse Yeats no começo deste texto. A lei não me deixa arriscar muito as formas novas por conta de três pessoas que dormem aqui ao meu lado nesse instante. Mas boto minha fé no acontecimento. Que ele seja breve na chegada e longo no tempo de estadia. Certamente o acolherei com olhos menos casmurros, mesmo que aos olhos da lei ele se apresente criminoso, se me entendem a metáfora.

Lei, Forma, Acontecimento. Acabei de ler o livro pela enésima vez. Como você peregrina na vida, caro leitor? Vai, me ajuda a pensar aí. Estou à deriva, achando que quase tudo não vale a pena. A alma anda pequena.

O peão intelectual

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Muito se fala sobre a desvalorização do professor. Em princípio, para abordar o assunto parece-me ser fundamental reconhecer que a situação está como está em parte por nossa culpa mesmo.

Tendemos a nos contradizer enquanto profissionais. Falamos de educação libertadora, mas somos guiados pela analogia religiosa: “professor trabalha muito e ganha pouco porque é sacerdócio.” Esse voto religioso desloca o papel de professor-profissional para o papel de professor-sacerdote, com todas as implicações, votos de pobreza e de obediência que ele traz. A distância entre o discurso político e a falta de atitude política amplia a desvalorização e vem da própria lógica que enfatizamos ao dizer “Coitado de mim. Sou professor”. A repetição vira realidade. Resumindo: estamos na lama profissional, entre outros motivos, porque nós mesmos ajudamos a propagar a desvalorização. Isso acontece com os médicos?

A valorização do professor passa necessariamente por nossa autovalorização. Quando vamos parar de repetir a lengalenga do coitadinho e passar a considerar nossa profissão como uma profissão de fato? Entre outras coisas, fazer isso significa querer ser remunerado pelo trabalho que se faz e não abrir mão disso. Mais trabalho é igual a mais dinheiro. “Oh!”, exclamariam escandalizados os que não conseguem sair do lugar do professor-sacerdote. Mas há de se perder o pudor prejudicial e o temor religioso de ir para o inferno só porque perguntarmos quanto é que vamos ganhar pelo trabalho extra que está sendo proposto, como se falar em dinheiro fosse sacrilégio.

O que estou dizendo não implica cair na porra-louquice do discurso vazio de trotskistas extemporâneos. Declarar guerra ao sistema que nos envolve é uma estratégia tão inócua quanto o discurso dessa gente. Precisamos entrar no discurso do mercado para poder desconstruí-lo. É de dentro que se muda o que não se quer. É necessário conhecer para transformar. Tróia pura. Façamos engenharia reversa e tratemos nossos patrões como opressores reconhecidos: reconhecer a contribuição de suas escolas para a sociedade, mas não abrir mão de que o jogo seja limpo, sem hipocrisia. Somos vistos como peões nas práticas de quem nos paga? Então queremos ser tratado como peões, sem problemas e sem carga pejorativa. Peões ganham mais quando dão hora-extra. Por que uma atividade não prevista em nossa remuneração tem de ser “de grátis”? Se começamos a fazer isso, teremos imediatamente um aumento no valor real do salário. Não no valor nominal do contracheque, mas no que ele vai representar em função de horas efetivamente trabalhadas. Só um lembrete: peão trabalha mesmo, viu?

Ou se trata o trabalho intelectual como realmente diferenciado, em termos de condições e remuneração, ou se assume de vez que trabalhamos em uma empresa como qualquer outra do distrito industrial. Assim se reconhece o que já acontece e se acaba com a hipocrisia. As boas empresas sabem que a satisfação de seus funcionários é investimento e não despesa. Entretanto, no setor educacional ainda vivemos um capitalismo muito primitivo.

Esse discurso zanza convenientemente de um lado para o outro: na hora do trabalho, o professor é diferente, na hora da remuneração é igual. Isso é capitalismo de conveniência. Entre o professor intelectual retoricamente reconhecido e concretamente mal pago e o peão da engrenagem educacional pago pelo trabalho efetivamente produzido, eu prefiro ser peão. Um peão intelectual. E a luta continua, companheiros.

Felicidade

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Participação na campanha da Coca-Cola. Gosto do conceito, por isso participei.

Os cisnes que nos habitam

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“Quero falar de sua mania de negar o que é
e de explicar o que não é”.
Edgar Allan Poe
Duplo Assassinato na Rua Morgue

As contradições internas de nossa subjetividade e a dificuldade de se lidar com elas. É esse o tema de fundo de Cisne Negro (Black Swan). Assisti ao filme e gostei demais.

À primeira vista, a bailaria Nina Sayers (Natalie Portman, magnífica e merecedora do Oscar) é movida pelo desejo de superação. Quer se tornar a “prima ballerina” da companhia de Thomas Leroy (Vincent Cassel). Uma parede psicológica, no entanto, precisa ser superada: O Lago dos Cisnes, o balé de Tchaikovsky, que Leroy decide montar e que serve de trigger para os conflitos.

Para Nina, viver Odette, o “Cisne Branco”, não é problema. Ela é a própria metáfora do cisne branco: pura e inocente. Seu desafio é a interpretação de Odile, o “Cisne Negro”, o seu outro, a sensualidade, a  sedução. O público acompanha a desintegração de sua sanidade enquanto ela enfrenta a pressão do diretor, a projeção da mãe superprotetora  (Barbara Hershey) e a chegada de uma bailarina concorrente (Mila Kunis), em si própria um cisne negro por default.

Acompanhei o filme pensando em duas coisas: os conflitos internos que compõem a subjetividade e a relação da histórias com os conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, do psicanalista Jacques Lacan. Vou de trás para frente.

Longe de querer simplificar e rasterizer os conceitos lacanianos, tentarei trazê-los para parâmetros de reflexão sobre o tema. Para Lacan, quando o indivíduo entra na linguagem, ele se subjetiva e se desnaturaliza. A linguagem se interpõe entre o sujeito e seus desejos, suas querências. Não dá mais para realizar o gozo dos desejos animais porque a linguagem nos ensina valores, conceitos e regras que nos limitam em nossas ações e omissões. A linguagem, que é o Simbólico,  carrega os sentidos do mundo que aprendemos, monta o nosso mapa conceitual desse mundo, muitos conceitos dos quais não temos domínio sobre. É um processo do inconsciente. Esse mapa, o conjunto de imagens, é o Imaginário. Mas para onde vão os desejos represados pelo simbólico? Vão para o inconsciente, em forma de pulsão e lá ficam malucos para sair. Saem às vezes em atos falhos e lapsos. Aquilo que o sujeito não consegue atingir, o estado bruto, é o Real.

Ok. Lacan em um parágrafo é querer demais. Mas dá para fazer o link com o tema do filme.

Todos nós, por meio da moldagem da linguagem, formamos uma personalidade visível e uma espécie de personalidade pulsional, o outro eu: o cisne negro, no caso de Nina. O branco andava livre, respaldado pela mãe superprotetora, numa naivité característica. O cisne negro de Nina vai ganhando espaço, se realizando na mudança do imaginário quanto a seu papel no mundo. O sujeito normal encontra formas de aliviar a pressão do que é recalcado, mas quando essa pressão é muita, o sujeito quebra, como Nina, que rompe com os limites do Simbólico, deslocando o Imaginário, reconfigurando-o. Ela rompe ao dar-lhe asas quando toma ecstasy e faz sexo com sua rival, quando a mata, quando se liberta da mãe. Desejos. Pulsões. Seu Real é magnificamente pictorizado no filme pela materialização do cisne negro em seu corpo, como se o aparecimento do mesmo fosse a transformação real do corpo humano no corpo do animal. Ela vai perdendo a razão – isso! a razão! – e a sua desrazão vai tomando conta, dando um 180 na parte dominante de sua personalidade. Sai Odette, entra Odile.

E nós, homens banais, que podemos pensar a partir do filme e de sua leitura lacaniana? Papo acadêmico apenas? Como analista de discurso, creio que nem todo academicismo é masturbação teórica. Eu me arrisco no que segue.

Nós, homens banais, precisamos ouvir Tchaicovsky. Metáfora. Necessitamos achar o equilíbrio entre os cisnes que nos habitam. Entre o eu permitido e o eu pulsional. Entre as contradições. Muito recalque, o sujeito implode psiquicamente. Muita alternância, eis que surge um terreno fértil para a esquizofrenia. O sujeito não pode tocar o Real puro. Tocar o Real puro é atingir a loucura. Precisamos do Simbólico a nos definir o Imaginário, que sempre está se movendo, sob o risco de alienação. É imperioso para o sujeito simbolizar o Real, dar-lhe sentido: pela arte, pela música, pela escrita, pelas tatuagens, pelas mil formas que cada um encontra para deixar vazar aquilo que é demais para lidar cara-a-cara. Somos todos, enfim, Odette e Odile.

Nietzsche dizia: “a alegria deve ser buscada não na harmonia, mas na dissonância”. Dou RT em Nietzsche. Porque nada jamais é descoberto: tudo é reencontrado, trazido à tona graças a um gatilho. Por falar nisso, o que que é aquele sinalzinho no rosto da Natalie Portman… =X

Adoro um livrinho chamado “O Real e seu Duplo”, de Clément Rosset. Já o li inúmeras vezes, cada uma de forma diferente. Diz ele: “Nada mais frágil do que a faculdade humana de admitir a realidade, de aceitar sem reservas a imperiosa prerrogativa do real. Essa faculdade falha tão frequentemente que parece razoável imaginar que ela não implica o reconhecimento de um direito imprescritível – o do real a ser percebido -, mas representa antes uma espécie de tolerância, condicional e provisória. O real geralmente só é admitido sob certas condições e apenas até um certo ponto: se ele abusa e mostra-se desagradável, a tolerância é suspensa”. Só que o controle dessa tolerância não é nosso…

Quantos cisnes e de que matizes existem dentro de você, leitor? E como eles convivem entre si? Quem subjuga quem? Até quando continuaremos com essa mania de, como diz Poe lá em cima, negar o que é e explicar o que não é?

No fundo, todos nós sabemos muito bem que só viveremos uma vez, que somos um caso único, e que jamais o acaso, por mais caprichoso que seja, poderá reunir duas vezes uma variedade tão singular de cisnes fundidos em um todo. Resumo do texto: dance o ballet da vida com suas contradições e sem medo. Duplo sentido para a palavra suas.

Diários

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Há uma ambivalência que nos habita. Somos o que não desejamos e desejamos ser o que não somos.

“Fui assistir a Diários de Motocicleta. Estava com medo de não conseguir vê-lo por se tratar de um filme que foge ao ethos hollywoodiano. Filmes assim ficam em cartaz somente uma ou no máximo duas semanas. Mas consegui.

O filme é uma adaptação para os cinemas do diário de Che Guevara. Dirigido pelo brasileiro Walter Salles, a história aborda a viagem de moto de Guevara e seu amigo, o biólogo Granado, pela América do Sul. A viagem foi feita antes de Che se tornar líder revolucionário em Cuba, viagem essa que acabou por mudar os rumos da vida do futuro guerrilheiro.

Ernesto Che Guevara e Alberto Granado saíram de Buenos Aires. Foram até a Patagônia, passaram pelo Chile e entraram fascinados no Peru. Lá visitaram a cidade histórica de Cuzco, capital do império Inca. Passaram por Lima e rumaram para Iquitos, na fronteira com a Amazônia brasileira. Depois da Colômbia, a viagem de sete meses terminou na Venezuela. Granado ficou em Caracas e Guevara seguiu para uma vida diferente, construída pela mudança de identidade possibilitada por seu contato com tanta desigualdade e injustiça encontradas pelo seu caminho.

Diários é uma carta de amor à América do Sul. Uma carta daquelas que só se escreve do fundo da alma e somente depois de se conhecer a alma do destinatário. Seus encontros com os mineradores explorados e com os leprosos de San Pablo acenderam em Ernesto o Che indignado e adormecido dentro de si.  O lado político do filme, o racional, é completado pelo lado afetivo nele entrelaçado, o emocional. São narradas histórias de amor, de desejo, de impetuosidade juvenil, de amizade. Impossível não lembrar daquele nosso amigo Alfredo, o de todas as horas. É essa bela mistura que faz com que haja uma intensa e imediata identificação com a história e seus protagonistas.

Na humilde opinião desse escriba barato, filme bom é aquele que faz a gente sair do cinema com algo martelando na cabeça. É aquele que incomoda nossas verdades e questiona nossas certezas e valores confortáveis. Diários consegue fazer isso de forma clara. Sua linguagem visual é um plus. Todas as vezes que aparecem os injustiçados e explorados no filme, a cena perde o colorido e as imagens ficam em preto e branco, como sem cores são as situações e as existências esmaecidas pela injustiça, vividas por quem não consegue espaço existencial, geográfico ou político. Semiótica trabalhada belamente na arte.

Mas o que o filme de Walter Salles me fez pensar foi exatamente na relação dialética entre a identidade e a existência do ser humano. Todos nós temos um eu mais fixo e centrado, como uma madre superiora e suas regras inflexíveis. Mas somos igualmente habitados por um outro eu mais maluco, porra-louca, pronto para topar todas, pegar uma moto velha e sair por aí como um destruidor dos valores.

A vida é um eterno cabo-de-guerra entre a madre e o louco. Para uns, a madre ganha sempre. Não permitimos que o louco nos surpreenda. Ele é esmagado impiedosamente e atirado no calabouço dos indisciplinados pelo autoritarismo do nosso superego e das cobranças sociais. Para outros, considerados mais normais pela sociedade, a madre quase sempre leva, mas vez por outra o louco rouba a cena e salta no bungee jumping, desce uma corredeira, nada nu num lago, come com as mãos, beija a mulher do próximo. Para outros ainda, a madre é uma figura que só existe como referência negativa do que não se quer ser e do que deve ser evitado. É o eu sempre inquieto e insatisfeito consigo, mutante de si próprio, eterno chutador de baldes.

É essa dualidade desbalanceada pelos fatos da vida que nos leva ter uma identidade. Fulano é certinho, doido ou normal. Rótulos que direcionam nossos atos em função não do que somos, mas do que os outros acham que nós somos e querem que nós sejamos.  E isso é muito forte. Viver é a forma de dar sustança à identidade. Che trazia consigo o revolucionário potencial. E se por acaso o louco não tivesse falado naquele aluno de medicina e decidido cruzar a América andina na Poderosa, nome dado à moto furreca que os levou ao encontro de suas identidades dormentes? E se não tivesse desafiado o estado vigente de coisas como algo que não é imutável, compreendendo a realidade daquele povo como produto de contextos naturalizados e por isso mesmo passível de mudança? E se não tivesse priorizado o vivido em detrimento do sonhado e tivesse ido a Miami para comprar o biquíni de sua namorada com os quinze dólares que ela lhe deu em vez de dá-los ao casal de mineiros lascados encontrados no caminho? A vida deu a Ernesto Guevara possibilidades para a emergência do louco dentro de si, o Che.

E nós? Fico aqui com meus botões perguntando: sou madre, sou louco ou as duas coisas intermitentes? E sendo o que sou, com uma identidade predominante, por acaso sou feliz? Gostaria de ser mais madre ou mais louco? Como anda o meu balanço identitário?

Existe a história e o real da história. A nossa história pode ser feita toda de imagens construídas por um simbolismo aprendido, teórico. Mas pode ser também construída pelo simbolismo vivido, material, historicizado. Saber identificar o estado atual de nossa identidade, seus efeitos sobre nossa felicidade e as atitudes que devemos buscar para mudar ou manter o estado das coisas é o que faz o individuo sentir-se bem consigo e com o mundo. Madres ou loucos reprimidos fazem mal à mente, à alma, à própria existência. Essa situação de repressão psíquica nos envelhece mais cedo, nos torna rabugentos, chatos, dispensáveis. Pare e pense nas pessoas de quem gostamos. Nem sempre a sintonia se dá porque o que somos bate com o que elas são. Às vezes a sintonia se dá por oposição, porque vejo naquele louco o louco que eu queria desesperadamente ser. Ou naquela madre, o porto seguro para a inconstância de minha movência constitutiva.

A madre dentro de mim também deve cantar e dançar mambo. O louco precisa dos momentos de paz de espírito, de reflexão e sossego. Precisa escrever um diário. Mas a questão é exatamente quando é o exato momento de fazer o quê. Aí, só a vida de cada um, o desejo de olhar-se por dentro, é que tem a vez e a voz para dizer. A meu ver, o problema é descartar a madre ou o louco a priori. Desse jeito, se descarta a vida e o que ela traz. Com isso, talvez o mundo ganhe um médico a mais. E um Che a menos.

Compreendo agora porque o filme foi aplaudido por 13 minutos seguidos em Cannes. Junto minhas mãos às palmas dessa platéia. E agradeço pela possibilidade da reflexão e confesso o desejo de buscar e ler tanto o livro de Che quanto o de Granado, ainda vivo. Como diz a Dona Maria, a senhora que limpa e arruma aqui em casa e que para tudo tem um ditado: “De médico e louco, todos nós temos um pouco”. O quão pouco é cada pouco em cada um de nós, cada um que o descubra percorrendo sua vida em sua motocicleta poderosa chamada Querer.

28 de maio de 2004

A bunda da Siemens

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[Texto publicado originalmente em 05 de fevereiro de 2004. Já discutia o bloqueio de informaçõe na internet].

Muita gente me pergunta a razão de eu não publicar os escritos em algum jornal. A resposta é que, primeiro, eu nunca ofereci e, segundo, nem sei se eles aceitariam essas mal digitadas. Até que poderia ser uma boa, pelo menos em termos de alcance de leitores. Mas enquanto eu não recebo uma proposta irrecusável da Folha de São Paulo, eu publico aqui mesmo no meu site e envio os textículos – com xis! – para uma lista de amigos, parentes e alunos que, gostando, vão passando e vão passando e vão passando…

Adoro feedback. Gosto de saber o que as pessoas pensam a respeito do que escrevo. Sempre recebo mensagens muito legais, como o gentil e-mail que me foi enviado pela mãe do meu cunhado Digão, a Dona Nazaré, se dizendo minha fã. Ganhei o dia. Mas na última semana, quando escrevi sobre reuniões de condomínio, uma resposta me surpreendeu. O e-mail era da Siemens, a fábrica. Primeiro pensei que pudesse ser obra sacana do My Doom, o vírus que encheu o saco e as caixas de entrada semana passada. De repente poderia ter vindo atachado nas infinitas e pesadas  apresentações de Powerpoint enviados pela Ana Célia. Mas como diria a Néia, que trabalhou para a minha mãe: O “peor” é que não era o vírus, não. Era um e-mail automático da empresa mesmo dizendo que meu texto havia sido sumariamente deletado assim que chegou a seus servidores pelo fato de conter a palavra “bunda”.  Parece que essa é uma palavra proibida de circular na Siemens. Será que lá ninguém tem bunda? Curioso com o fato, analisei detalhadamente o e-mail e verifiquei que se tratava de um programa censor automatizado que se baseia numa série de palavras para vetar alguns e-mails recebidos pelos funcionários, no caso em tela uma aluna minha da pós-graduação que lá trabalha e que, suponho, não recebeu o texto e, por conseguinte, não viu minha bunda passar.

São duas as questões que tilintam nos meus dedos por causa desse episódio: os limites da liberdade de expressão e o controle da linguagem. As perguntas que se colocam são: até que ponto podemos selecionar previamente um conteúdo para outras pessoas, seja ele qual for? Até que ponto podemos decidir para terceiros o que é ou não desejável, bonito, ofensivo ou abominável, tirando-lhe assim o direito de conhecer para escolher ou, inclusive, para não escolher? Taí: se tem uma coisa que é abominável e ofensivo na minha opinião é a censura prévia. Não concordar com algo e fazer uso de qualquer nível de poder para forçar que outras pessoas também não concordem é uma violência simbólica ferrada. Não gosta, mermão? Então não lê, não assiste, não compra, não usa, muda de canal. Há quem goste, quem leia, quem compre, quem use e até quem grave o canal. Tem gosto para tudo. Tem gente que veste amarelo. Tem até quem seja Flamengo! O direito à escolha é uma prerrogativa do seres humanos e dos Flamenguistas  e temos vários momentos na história da humanidade em que esse direito foi cerceado, estando a própria história aí para dizer como foram ruins esses momentos e como eles não deixam nenhuma saudade.

Escolher seja lá o que for não é um ato neutro. O programador – ou alguém que manda nele – listou uma série de palavras e decidiu por todos, como se tivesse procuração geral. Decidiu que eles não deveriam ler aquilo que ele acha indecente, imoral ou inapropriado, conceitos, aliás, bastante subjetivos e definidos por formações discursivas diferentes de formas diferentes. Sei não, mas eu estou mais na turma do “Deixa eu ver para ver se quero” do que na do “Vixe! Tira isso daqui! Deusulivre, mana! Pé-de-pato, mangalô, três vezes!” Recebo todo dia um monte de mensagens sobre coisas que não importam, muitas das quais não preciso, como aquelas mensagens de enlarge your penis . Eu passo a vista e decido se me útil ou não. Nesse caso, diga-se de passagem, não é. O importante disso tudo é que eu decido e não quero ninguém decidindo por mim.

Agora pára e pensa, leitor amigo: e se o programador – ou o chefe dele, ou o chefe do chefe etc – for Testemunha de Jeová e colocar “doação de sangue” na lista negra de palavras e expressões abomináveis? Quantos potenciais doadores não deixariam de participar, digamos, de uma campanha convocada pelo e-mail? Se for do PSTU e vetar “Estados Unidos”, quantos negócios a empresa não perderia? E se o censor for o meu primo Amaro Junior, webdesigner da Suframa, que enrola a noiva há treze anos, detonando toda e qualquer ocorrência de “casamento” ou “matrimônio”, como tem feito por mais de uma década? As possibilidades são infinitas. Basta fazer um rápido exercício mental e ver como é injusto o outro decidir por nós baseado em suas crenças, valores, conceitos e preconceitos. Já pensou se uma empresa chamada World Bunda Incorporated, de Singapura, digamos, manda uma mensagem a fim de encomendar negócios milionários em aparelhos de telefones da Siemens. Sua bunda não passa da porta digital. É barrada na chegada.

A empresa tem todo direito de ter suas regras, claro. Mas controlar a linguagem é uma das crenças mais pueris do ser humano. Linguisticamente, dizemos que mais do que falar a língua, é ela que nos fala através dela. E a língua é líquida. Escorre pela mãos e acha por onde escorrer. Ninguém aprisiona o sentido, pois ele sempre escapa, ele é fluido. Pode-se, por exemplo, escrever b*u*n*d*a, em vez de bunda, para burlar o bedel digital. Ou, como diria o Didi dos Trapalhões, pode-se falar “região glútea”. Mais opções? Nádegas, popozão, anca. Enfim…

É preciso saber que se pode dizer muito através do silêncio, como faziam os jornais na época do regime militar. Censurados, eles publicavam um vazio ou uma receita de bolo na primeira página, no lugar da matéria cortada. Pode-se dizer dizendo de outra forma. As músicas duplex de Chico Buarque são obras-primas nisso. A “Bárbara” da música de Chico, mais do que um nome de mulher bonita – e estou pensando na minha prima Bárbara Cyrino, para ser sincero –  era um adjetivo para a ditadura. “Cálice” falava pela homofonia: “Pai, afasta de mim este cálice/cale-se”.

A questão de fundo é: quem pratica a política do silenciamento lingüístico fomenta o silenciamento da política, entendida como a capacidade do ser humano de tomar decisões. Hoje sabemos que o que se quer é gente no mundo e nas empresas para pensar e decidir a partir das informações que chegam – que chegam! – e não somente para executar tarefas mecânicas, como o Carlitos de Charles Chaplin em Tempos modernos. Há um grande choque de objetivo quando uma empresa decide que seu empregado não precisa decidir porque já decidiram. É um contra-senso, uma verdadeira pavulice para os tempos de hoje.

Penso sinceramente que gastar dinheiro em sistemas de censura é alocar mal os recursos que já são poucos em tempo de estagnação econômica. A propósito, a palavra bunda entrou na Língua Portuguesa através de mbunda, de um dialeto da Angola, trazida pelos escravos, segundo o honesto Houaiss. Censurar a bunda é coisa de gente bun… digo, gente nadegona. Ah, deixem minha bunda em paz. E minha aluna, coitada, que não vai ler essa de novo…

Pescando reflexões

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Fui pescar. É, pescar peixe mesmo. Comprei uma vara completa, com molinete SweepFire 2500B da Daiwa, iscas Borboleta, massinha, pesinho, bóia e tudo que tinha direito. Na loja, o vendedor me garantiu que a isca que comprei, com três âncoras de anzol, pegaria tudo. Uma vez dentro, não sairia “nem com nojo”, como se diz num belo amazonês.

Não, não sou pescador. A única vez que fui pescar foi há três anos, no lago de Balbina, com meu sogro e o cunhado da Bia, que estavam aqui. Pescaram 97 peixes, entre tucunarés e piranhas. Desses 97, eu não pesquei nenhum. Mas torci muito a cada fisgada, eu juro.

Dessa vez, eu disse a mim mesmo, seria diferente. Fomos só eu e meu sogro, que está por aqui. Alugamos um barquinho lá no portinho da Baixa Ponta Negra. Saímos oito da manhã e voltamos lá pelas duas da tarde. Quem foi conosco foi o Luzivaldo, o Lulu, barqueiro, pescador e Forrest Gump, dadas as histórias sem fim que contou nesse intervalo.

O Rio Negro está cheio. Fomos para quatro locais diferentes e nada de peixe. Eu não vi um peixe sequer. Mas vi um boto, fazendo a sua dança arqueada, numa cena de impressionar. Aliás, o Rio Negro é impressionante. Como impressionante também são as casas dos mais abastados e suas lanchas na beira do Rio. Menos imponentes, mas não menos impressionantes, são as casas flutuantes dos ribeirinhos ao longo das margens do Negro. Suas redes penduradas são um convite ao abandono de tudo.

A certa altura, não pescando nada, recolhi a vara do rio. Na saída d’água, a linha ricocheteou e  anzol veio em minha direção. Em um ato instintivo, protegi o rosto com a mão. Pronto! Se não peguei nenhum peixe, já não podia dizer que não havia pego nada. Acabara de fisgar meu dedo mindinho. Pesquei meu dedo mindinho! O anzol entrou fundo. Calmo, absurdamente calmo para os meus padrões quando há sangue escorrendo, pedi ajuda de meu sogro e do Lulu. Lulu, com sua sabedoria herdada pelos seus, creio, 50 anos, disse: “Não puxe não! Tem de empurrar pra cabeça do anzol sair do outro lado!”. “Como assim?!”, disse eu. “Se puxar, finca de vez! Tem de varar do outro lado. A gente então corta a cabeça dele e puxa de volta”. Não bastasse um furo, teria de fazer outro, dessa vez de dentro para fora. O vendedor na loja tinha razão. Aquilo não sairia do meu dedo “nem com nojo”, pois o anzol é como uma flecha: uma vez dentro, puxar só o fixaria mais na carne, nesse caso a do meu dedo mindinho. Macho pacas, eu disse: “Então faz logo isso!”, entregando o dedo ao Lulu e a alma a Deus. Depois do “tuc!”do anzol rasgando o dedo (juro que fez “tuc”!), cortaram a cabeça com alicate e puxaram de volta. Fazia tempo que eu não sentia uma dor tão lancinante.

Resolvida a questão do meu piercing dedal involutário. Continuamos a pescar e voltamos no horário combinado. Sem peixes. Paciência! Mas se não pesquei peixes, pesquei, além do meu mindinho, algumas reflexões que o rio e a pescaria me proporcionaram.

Pesquei a certeza de que a nossa vida é muito pequena diante da grandiosidade da vida, do mundo, de Deus. A imensidão do Rio Negro e suas águas cor de coca-cola colocaram-me didaticamente no meu lugar de efemeridade, de coadjuvante de um mundo maior, incontrolável, impegável, indominável. E foi uma certeza de pequenez grandiosa, se é que você, leitor, me entende. Uma coisa meio socrática sobre a sabedoria do mundo.

Pesquei, na mesma linha da pequenez grandiosa, mais um exemplo da certeza de que sempre tem alguém no mundo que vai saber mais sobre alguma coisa do que a gente. Eu ia puxar o anzol. Graças ao Lulu e seu pós-doutorado em rio, meu dedo não virou uma laranja esbagaçada. Diz ele que uma vez aconteceu algo parecido com um pescador de São Paulo no Uatumã, mas foram seis anzóis e na cabeça. Ele que tirou. Acho que é gumpisse dele, mas ele tem direito. Deixa quieto.

Pesquei, com o caniço da meditação, que o silêncio é tão importante para a melodia quanto as notas que a compõem. Que a pausa faz parte da música. É preciso parar a vida em seu ritmo frenético e esquecer-se de si no mundo. Olhar o rio, o céu, o crespo verde das árvores que emolduram a natureza da vida. É preciso permitir-se, na grandeza externa, refletir sobre a grandeza e a pequeneza interna. É preciso pensar em nada, atingir o nirvana, superar a existência, a pureza, transgredir o físico. Na língua Pāli, “Nibbāna” significa “sopro”, “soprar” e “ser assoprado”.  Para o budismo, é o culminar da busca pela libertação, ser assoprado pela existência sem plano pré-determinado, dançar leve no rio, como fazem os botos.

Aprendi, por fim, que a gente sempre pesca o que já se tem e não se sabe. Mas que é preciso uma chave para que o anzol no dedo deixe de significar dor e signifique prazer. O gozo, diz a psicanálise, é a libertação da dor represada. Mesmo sem pescar nenhum peixe, senti o prazer dos pescadores que, em vez de dedos mindinhos, exibem seus aruanãs imensos como troféus.

Se permita jogar sua linha, leitor, para ver o que vem de volta.  Nem precisa de um molinete SweepFire 2500B da Daiwa! Basta fechar os olhos. Vale a pena.

Já agendamos com o Lulu Gump a próxima.  Vem com a gente?

Carta de recomendação de mãe

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Esta carta foi mandada por minha mãe para a Bia, sem eu saber. Eu estava viajando para Campinas para vê-la pela primeira vez, depois de já estar namorando  à distância  há quase um mês. Tinha saído em frangalhos de um casamento. Apostava todas as minhas fichas restantes na Bia.  Jackpot! Mãe é mãe. Amo as mulheres de minha vida.

O manto do Arlequim

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O filósofo Jacques Derrida desenvolveu a teoria da Desconstrução. Segundo ele – e aqui reduzo ao osso sua teoria – o nosso mundinho, centrado na razão, é visto como fundamentalmente binário. Há sempre dois pólos antagônicos que aparecem em qualquer situação. Analisar tal fato pela Desconstrução, desconstruí-lo, passa por localizar quais são os dois pólos envolvidos, qual é o hegemônico em relação ao outro e como se sustenta essa relação. Nessa teoria, amplamente usada na literatura, fica de fora, no entanto, um terceiro elemento. E sempre há um terceiro elemento a dar sentido aos fatos do mundo.

Em seu livro Modernidade e ambivalência, o sociólogo Zygmunt Bauman, indo além da dualidade de Derrida, chama a atenção para o que não é da ordem do maniqueísmo, para o que foge ao jogo da dicotomia. Ele diz que se existem amigos e inimigos, existem também estranhos. Amigos e inimigos colocam-se numa oposição uns aos outros. São diferentes, mas se localizam uns nos outros, se complementando, formando um todo único. O estranho, não. O estranho rebela-se contra essa colisão conflituosa entre amigos e inimigos. A ameaça que o estranho carrega, diz Bauman, é mais terrível que a ameaça que se pode temer do inimigo. O inimigo a gente conhece. O estranho não é amigo nem inimigo – e pode ser ambos. O estranho é um membro da família dos indefiníveis. Toda oposição (bem/mal, amigo/inimigo, amizade/inimizade) possibilita o conhecimento e a ação: a indefinição paralisa. “Os indefiníveis expõem brutalmente o artifício, a fragilidade, a impostura da separação mais vital. Eles colocam o exterior dentro e envenenam o conforto da ordem suspeita do caos. É exatamente isso que os estranhos fazem”, termina Bauman. Mas, parafraseio o autor: assim como pode ser o inimigo mortal, o estranho pode ser o amigo de uma vida. E quem saberá sem conhecê-lo?

Por que falo do terceiro elemento? Por que busco em autores lidos explicações que extrapolam os básicos e confortáveis “sim” e “não” e aponto para o incômodo “talvez”? Se pudesse classificar as formas de encarar os fatos no mundo no que diz respeito às relações desses fatos com outros fatos, diria que há três tipos de pessoas. Há os que pensam monossemicamente (ancorados sempre em uma e somente uma matriz de sentido), os que pensam binariamente (fixados numa política do “ou isso ou aquilo”) e os que pensam ambivalentemente (levados a se perguntar sempre pela especificidade de cada caso).

Os que pensam monossemicamente pensam, como diz a palavra, a partir de um único sentido. Aqui enquadro os alienados de várias espécies: político, religioso, afetivo. Não uso a palavra alienado de forma pejorativa, mas como categoria de posicionamento, buscando sua etimologia no latino “alienare”: “perder os sentidos”. São aqueles que só veem um sentido e uma explicação em e para tudo. Podem até ser felizes com sua visão em mono. Se algo bom aconteceu, foi “presente de Deus”. Se algo ruim bateu na vida, foi porque “Deus quis assim para provar minha fé”. É mais ou menos isso, jogando para o nosso bom Deus as responsabilidades pesadas de nosso livre arbítrio. Se o Fluminense perdeu a culpa é do presidente. As responsabilidades pelos males do mundo é do inimigo político. “Deixo você pensar desde que pense o que eu penso”. Por aí vai. Seja qual for a explicação, ela tem sua origem sempre no mesmo local definido, seja Deus, o ego, o partido político, o marxismo ou o Edir Macedo.

Os que pensam binariamente – e assim o faz a maioria das pessoas – trabalha dentro de um maniqueísmo fácil de lidar, mas muito perigoso. Fácil porque ou se faz isso ou se faz aquilo. Ou se ama ou se odeia. Ou se vive ou se morre. Nesse paradigma de pensamento se ganha pela extremidade, cortando-se pela raiz, mas se perde pelo miolo, levando para sempre com a raiz o bem que nela habita e que pode conter a cura das incuráveis doenças. Quem pensa assim, ou-ou-mente, esquece que entre oito e oitenta há setenta e duas outras possibilidades. Travestido de comodismo e resolução em estéreo, esse modo de ver o mundo aponta para uma intolerância em relação às especificidades da vida, às importantes filigranas do viver, aos casos e casos que fogem às regras e que, exatamente por isso, sustentam suas necessidades de existir.

Por fim, há os que pensam ambivalentemente. Esses buscam observar o preceito da terceira via. Não como decisão a priori por essa via, mas como possibilidade extra no horizonte das decisões. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, como diz a sabedoria popular. Pode-se até decidir pelos extremos, mas passa-se necessariamente por se considerar o meio que os une. A vantagem de se pensar assim é exatamente seu problema: como lidar com o “inlidável”, que não conhecemos? Como encarar o estranho estranho, a que se refere Bauman? Será ele nosso oxigênio extra da vida ou nossa cicuta fatal da morte? O risco sempre se apresenta, mas junto com ele se apresenta a possibilidade os novos e deliciosos ganhos em Dolby surround, mais próximos dos verdadeiros sons da vida. Já dizia Caetano: o que ainda não é mesmo velho apavora a mente.

Pensar ambivalentemente, apesar de mais arriscado, me parece estar mais de acordo com a dinâmica do mundo real, multifacetada e caleidoscópica. Pensar que só há um sentido nas coisas é empobrecer a beleza da diversidade. Pensar que é ou uma coisa  ou outra é amesquinhar e positivar a dialética das relações. No entanto, pensar que tudo pode ser diferente é acrescentar à vida multiplicidade de escolhas e caminhos novos, construídos exatamente pela singularidade de cada fato e de cada relação. Por isso não há receitas, exatamente por esse produto das singularidades ser único e sempre diferente, determinado pelo histórico e pela historicidade, o material da história. Quem está de fora não verá nunca o porquê de certas coisas da mesma forma de quem está de dentro. Os olhos veem de onde os pés pisam. O de fora tenderá a sugerir uma visão monossêmica ou maniqueísta, impondo perdas que, no final das contas, não serão suas, mas nossas. Quando a gente está dentro do edifício, não podemos sugerir destruí-lo, pois iremos juntos. Podemos sugerir questioná-lo, alterá-lo aos poucos, de modo a permitir que vivamos sem o sobressalto do iminente desabamento.

É preciso ser tolerante com nossa história. É preciso dar sentido aos sentidos. Hannah Arendt, pensadora alemã, nos fala da importância da moldura semântica, de por algo em seu contexto de significação, quando nos fala da dor da perda: “Todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas”. Nas histórias, a dor se torna suportável porque deixa o tempo fútil da emoção pela imortalidade da duração. Toleremos, pois, o tempo.

Alguns poderiam questionar se essa tolerância do pensamento ambivalente não seria não a aceitação do valor do outro, mas ao contrário, uma maneira mais sutil e astuta de reafirmar a sua inferioridade e de oferecer um pré-aviso da intenção de eliminar a alteridade do Outro, como fazem os maniqueístas. Não seria a política da tolerância aqui apresentada um consentimento em adiar o acerto final de contas – com a condição, no entanto, de que o próprio ato do consentimento reforce ainda mais a ordem de superioridade vigente? São questões e leituras possíveis, mas que mesmo assim não me convencem da urgência de uma decisão fatal e fatalista, seja ela única ou maniqueísta. Decidir é, de certa forma, adiar pela análise. Adiar é, de certa forma, esperar. Mas é preciso esperar agindo sobre a espera, fazendo a hora. Parece mais sensato, apesar de mais trabalhoso.

Vou agora remeter esse texto a um outro autor para ver se deixo mais claro um escrito tão cabeça como esse: Michel Serres, também filósofo. Em Le Tiers-Instruit – “O Terceiro-Instruído”, numa tradução sem graça, que é a que meu francês permite –, Serres fala que nós somos uma mistura original ou um original misturado. Dos genes de nossos dois pais nascemos nós, terceiros, como seres únicos. Mesmo nascidos canhotos, aprendemos a usar a mão direita eventualmente. Mesmo nascendo aqui no local, somos cidadãos do mundo, portadores de certas visões cosmopolitas. Assim, cada situação vivida representa um retalho colhido, somado e suturado ao pano que é nossa mente, que é nosso ser, que é nossa história, que é nosso discurso. São como os retalhos multicolores do manto do Arlequim, que representam as terras por onde passou. É um novo traje sempre sem deixar de ser o velho, mesmo com cada remendo acrescentado. Assim somos nós, a cada dia. Entre mim e a vida, sempre nasce um novo eu, um terceiro. Esse terceiro pode ser, se souber fugir do insosso mundo único e do intolerante mundo binário, um terceiro mais feliz, mais instruído. Um terceiro-instruído, como chama Serres.

Concluo dizendo: se na vida tudo é possível, o improvável está no meio. Lidar com o improvável como possibilidade nos faz mais fortes, menos acomodados, mais atentos e mais preparados. É a possibilidade do improvável que nos possibilita nos encontrarmos na hora da escuridão porque levamos – entocada no bolso – uma caixinha de fósforo, desnecessária para aquela jornada planejada, mas fundamental para uma outra que lhe tomou inesperadamente o lugar. Sejamos, pois, menos resolutos quanto às nossas decisões a priori. Duvidemos mais de nossas certezas e tenhamos mais certeza de algumas de nossas dúvidas. Fujamos da rotulação do diferente como sendo sempre o nosso contrário: a vida não é o boi de Parintins, simplesmente Azul ou Vermelho. Tiremos as vestes previsíveis, quando em quando, e vistamos o manto do Arlequim. O manto, produto dos retalhos das aprendizagens de nossas vidas, nos fará pessoas certamente mais felizes, pois nos lembrará que aprendemos com nossa história. Ou pelo menos, ele nos deixará mais bonitos e vistosos. O que já é um ganho nessa vida que insiste em se nos apresentar, falsamente, como feia e cinzenta. Certamente ela não é assim. Ou será que é?