vida

Reaprender a viver

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Foi pela janela da cozinha. De manhãzinha, enquanto esperava o café coar. Pensava eu nas pequenas mundanidades, olhando o horizonte, quando fui surpreendido por um casal de araras vermelhas que cruzou o céu bem à minha frente. Para quem não sabe, araras voando de manhã cedo e no crepúsculo são parte do patrimônio estético de Manaus. Uma coisa linda de se ver. A cena me lembrou que, além dos boletos e das broncas cotidianas que habitavam meus pensamentos, a vida tem poesia.

A vacinação parece que está engrenando. A despeito do governo inepto e mais preocupado com suas tenebrosas transações do que com ajudar a combater a pandemia, pandemia que, segundo Boaventura Sousa Santos, marcou de fato o início do século 21. O Corona mudou nossas vidas de muitas maneiras nestes últimos quinze meses. Agora, tudo indica, sendo otimista, a vida tende a voltar a ser vivida de forma parecida com o que era antes. Nós, os responsáveis não-negacionistas, já saímos timidamente para restaurantes, shoppings, convescotes restritos. Não sem usar a máscara e não sem se preocupar, de tempos em tempos, de melar a mão no gel.

É ainda uma sensação de contravenção, de liberdade condicional. Confesso que é estranho estar nos lugares, como uma livraria, e não ter um sofá para se sentar. “Venha, mas não fique à vontade” parece ser o recado. Só queria sentar e folhear sem compromisso um livro sobre história celta enquanto espero minha mulher comprar roupas na loja de departamento ao lado. Mas não há bancos, cadeiras, poltronas. A pandemia comeu todos.

Pensando aqui: voltar à convivência com os outros em presença é algo estranho. Meio que desaprendemos a manha. É um troço agridoce. Há algo de excitante e de desconcertante nesse retorno. É como se, de repente, voltássemos à cidade natal depois de muito tempo vivendo longe dali. Como estarão as pessoas? Aquela rua, mudou? A mãe do amigo ainda vive? O que devo dizer e como devo cumprimentar as pessoas? Aperto de mão já? Soquinho com soquinho? Cotovelo com cotovelo? Só um olá sem toque? Abraçar ainda é over? Quais as regras de etiqueta legadas pela pandemia devemos aprender nesses novos tempos?

Nossos músculos sociais atrofiaram. Haja fisioterapia social para colocá-los de volta no lugar! Desaprendemos a socializar. É a constatação. Para quem, como eu, sempre foi muito caseiro, a pandemia trouxe um certo conforto. Eu adoro minha casa. Mas preciso agora, de novo, abraçar o desconforto do incerto, do iminente retorno. Parece complicado mudar tudo de novo depois de um ano ouvindo que não deveríamos socializar em grupos por causa de um vírus mortal à solta.

O enclausuramento compulsório da pandemia esventrou uma série de questões filosóficas. Precisamos sair tanto de casa para viver a vida? Não dá para resolver com uma mensagem de zap ou uma chamada no Meet? Precisamos mesmo enfrentar trânsito pesado, poluir o meio ambiente, vestir calça comprida e sapato? As mulheres precisam voltar a usar sutiã apertado, tendo passado tanto tempo com o corpo liberto nos domínios do lar? Sério mesmo que temos de ir para barzinhos para socializar? Não dá para ficar só apreciando a playlist do Spotify? O quero para minha vida? Que mundo quero para minhas filhas? Para os meus? Quando eu vou ter de novo todo esse tempo para minha família? Não sei as respostas. De verdade. Gestalt aberta. Para o psicólogo que sou, vejo um pasto imenso a perder de vista.

Fato é que o isolamento fez a gente recalibrar prioridades do que realmente interessa na vida. Descobrimos a inércia e como habitá-la sem fazer nada, sem as injunções das obrigações de horários. E gostamos. É claro que me refiro à parcela das pessoas que pôde ficar em casa, em trabalho remoto. Para quem esteve na batalha dos hospitais, do transporte público, das farmácias, dos supermercados etc., o papo é outro. Meu respeito.

Reaprender a viver. Reaprender a abraçar. A sorrir na presença. Cuidar mais do coletivo. Zelar mais pelo mundo. Viver a vida que de fato interessa porque ela, a vida, é um sopro e pode não mais estar lá ao dobrar a esquina. São lições da pedagogia do vírus. Desaceleramos para perceber a paisagem da vida, para prestar mais atenção no caminho e nas companhias de viagem do que no destino.Dá até para ver, sem pressa, as araras na janela. Fim de tarde agora. Um casal acabou de passar por aqui como que para ilustrar o texto. Sincronicidade. Ou é Deus que é um poeta mesmo.

Cacos da vida

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Cacos

Final do ano é tempo de balanço. Estamos nós a pesar as coisas para lá e para cá para checar se na balança da vida o ano foi mais para lembrar ou mais para esquecer. O conjunto das boas coisas que vieram é posto lado a lado com o conjunto das coisas que gostaríamos de esquecer. Aí vem o veredito: terminamos o ano felizes, soltando os fogos de artifícios da vida junto com os da virada, ou terminamos o ano tristes, desejando ardentemente que o que chega chegue logo e traga com ele os ventos haraganos.

Se você está feliz, leitor querido, que bom! Que essa felicidade se multiplique no ano vindouro. Mas eu queria falar mesmo com você, que anda triste. Foi para você que eu escrevi este texto.

Você sabe por que a gente fica triste? Porque a gente começa a viver uma vida que, de alguma forma, começa a ficar cheia de coisas que carecem de sentido. A vida tem de ter sentido. As minhas leituras na psicologia têm me ajudado a compreender isso. Deixa eu compartilhar um pouco do que já aprendi.

As tristezas são tributárias ao tempo. Na época de Freud, as neuroses eram causadas por questões de sexualidade, bastante reprimida na Europa pós-vitoriana. Um outro psicanalista, Alfred Adler, que trabalhou com Freud, achava que o pai da psicanálise superestimava a questão sexual. Aí ele propôs uma teoria dizendo que o meio social e a preocupação contínua do indivíduo em alcançar objetivos preestabelecidos eram os determinantes do comportamento humano. Isso incluía a sede de poder e a notoriedade. Quando essa busca falhava, eram gerados complexos de inferioridade, transformando a incapacidade numa dinâmica patológica, numa tristeza. A neurose não era mais por causa do sexo reprimido, mas por causa da inferioridade de uma expectativa social frustrada.

O tempo foi passando, o mundo foi mudando. Para enfrentar as demandas do mundo contemporâneo, a pessoa precisa se ancorar em algo. Até um tempo atrás, esse algo costumava ser a tradição. Se não soubéssemos o que fazer, bastava olhar para o que a tradição determinava para nós, nos encaixarmos nesse sistema como uma engrenagem e seguir a vida até morrer. A vida normalizada também gerava neuroses, mas o encaixe social e o conforto sobre o que fazer aliviavam os conflitos. E o mundo mudou de novo.

Vivemos em uma época pós-moderna em que as tradições têm se esfarelado. Antes os homens trabalhavam fora, as mulheres cuidavam da cria e tudo que fugia ao script não podia vir à luz. Hoje todas as possibilidades caminham na praça em plena luz do sol. Tudo saiu do armário e as possibilidades ganharam vida plena. Mulheres conquistaram seu espaço, a sexualidade explodiu para todos os lados, aquela tradição confortadora virou apenas uma dentre centenas de outras possibilidades vivas. O que nos resta fazer, então, sem a tradição para nos agasalhar e nos dar conforto?

Logicamente, nos restam alguns caminhos. Ou fazemos o que os outros querem que nós façamos – e aí eu caímos num conformismo – ou fazemos o que os outros nos mandam fazer – aí caímos num totalitarismo. Seja um ou outro, vamos acabar fazendo aquilo que não nos interessa, vivendo uma vida que não é nossa, e isso vai esvair o sentido do que fazemos, levando à tristeza e ao adoecimento psíquico. Resta, no entanto, um terceiro caminho, que me parece o mais interessante: fazermos o que queremos e, ao fazer o que queremos, preencher a vida de sentido.

“Ain, mas nem sempre dá para fazer o que a gente quer!” Verdade, nem sempre. Mas o “nem sempre” tem de virar um “quase sempre”. Quase sempre temos de fazer o que nos causa alegria, prazer, paz. O resto inevitável deve ser preenchido com a chatice inerente à vida, com os sapos engolidos no trabalho, com a aula porre daquele professor medíocre na faculdade que somos obrigado a assistir, com uma ou outra situação que temos de encarar e que, de fato, foge da nossa escolha. Resumindo: se não houver mais alegria e prazer do que tristeza e desprazer, a vida está errada, parceiro. Aí é preciso reagir e sair do conformismo ou do totalitarismo. Senão nós vamos adoecer, vamos ficar tristes, infelizes, deprimidos. vamos viver sem sentido.

Qual é o sentido? É essa a pergunta que temos de nos fazer todos os dias. Qual é o sentido de continuar em uma relação afetiva que nos machuca, que nos oprime, que não nos dá alegria? Qual é o sentido de continuar trabalhando em um lugar que nos adoece só de pensar, quando acordamos, que temos de ir para lá? Qual é o sentido de insistir em coisas que acabaram e que, mesmo que voltassem, não seriam a mesma coisa? Qual é o sentido de preencher nosso tempo atrapalhando a vida dos outros em vez de cuidar com carinho da nossa própria, rota e maltrapilha psiquicamente? Qual é o sentido de movermos mundo e fundos para ter o melhor carro, o iPhone mais fuderoso, a festa mais cara de aniversário para o nosso filho só para ganhar o like da sociedade que valoriza a aparência? Black Mirror, temporada 3, episódio 1: “Queda Livre”. Vá lá assistir e depois a gente conversa.

Vida sem sentido bom é vida triste, mambembe. Você que está terminado o ano triste e que me leu até aqui: qual é o sentido de continuar alimentando essa tristeza ou essa situação que lhe causa a dor? Mova-se, mexa-se, não dê moral para a melancolia. Feche ciclos que se arrastam. Corte relações com quem faz mal. Se não der conta sozinho, procure um psicólogo para ajudar a virar a mesa, a virar o jogo, a virar do avesso. Porque a vocação do ser humano é a felicidade. De cada um. Porque cada um é único, com sua história, suas glórias, seus segredos, suas batalhas perdidas. Com a dor e com a delícia de ser quem se é. Faça a sua história valer a pena. É preciso se mexer e se movimentar. A vida se ajeita quando a poeira do movimento baixa. E segue porque tem de seguir. Se uma parte de nós caiu e quebrou, é preciso juntar os cacos para ir adiante.

Na década de 40, a cidade de São Paulo tinha duas indústrias de cerâmicas. As peças que quebravam eram jogadas fora. Um operário de uma delas, sem dinheiro para construir sua casa, pediu para ficar com os pedaços das cerâmicas quebradas. A fábrica consentiu. Ele então fez o pátio da sua casa com os cacos. Mas como não tinha sempre cacos da mesma cor, misturava uns amarelos e pretos aos mais comuns, vermelhos. Logo, a moda se espalhou e pátios feitos de cacos de cerâmica viraram a coqueluche da classe média paulistana, em uma época em que a coqueluche ainda era uma doença endêmica e a expressão faz mais sentido. Muitas casas em Sampa até hoje possuem pátios lindos feitos de cacos coloridos.

A vida feliz é um pátio bonito feito com nossos cacos quebrados. De todas as cores. Na sua maioria composto dos vermelhos felizes, mesmo que pontuado aqui e ali de alguns cacos de outras cores e outros tons. A vida é feita múltiplas cores. O importante é a arte que se tece e o resultado final dos cacos juntados: a felicidade. Que seu balanço lhe traga os ventos haraganos ao rosto. Seja feliz, leitor. Seja feliz, leitora. É o desejo sincero de alguém que juntou muitos cacos nesse 2016 e que tem fé na vida, fé no homem e fé no que virá em 2017. Faz sentido?

É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol

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Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.
Vinicius de Moraes

Meu pai morreu há três meses. Foi o mais próximo que a morte chegou de mim. Antes disso, ela tinha me visitado quando levou minha vó, há 15 anos. Um hiato que me fez esquecer da morte por um bom tempo, ocupado que estive em viver as coisas da vida.

Procurei entender a morte do meu pai. Eu li tudo que pude sobre perda, separação, angústia, luto. Li sobre a dor do amor. Livros, artigos, assisti a vídeos e filmes. Tentei buscar um sentido para a morte do meu velho, como recomenda o psicólogo judeu Vicktor Frankl. Ele sobreviveu à barbárie de Auschwitz dando sentido à experiência trágica. Frankl dizia a si mesmo que precisava explicar ao mundo a psicologia de um campo de concentração e isso o manteve vivo. Só de Frankl, eu li três livros.

Descobri nas minhas leituras que o luto normal demora pelo menos um ano. Tempo do primeiro tudo sem a pessoa: primeiro dia sem, primeiro mês sem, primeiro dia dos pais sem, primeiro aniversário seu sem, primeiro aniversário dele sem, primeiro Natal sem, primeiro ano sem, primeira falta de colo. A morte do meu pai me trouxe mais pesadamente a consciência da finitude. Mas me trouxe muito mais do que isso: trouxe uma maior clareza sobre minha própria existência.

Ter consciência sobre si mesmo é um dom que desenvolvemos com a idade. Podemos potencializar e acelerar esse dom por meio de eventos pontuais de dor. Aprendemos a ter consciência do que vale e não vale a pena investir, de quem vale e de quem não vale gostar. Fica clara a consciência de que a vida precisa ter qualidade. Abandonamos sem dó aquilo e aqueles que nos fazem mal. No entanto, esse ter consciência sobre si traz no pacote a ferida da mortalidade. Nascemos, crescemos, procriamos (alguns) e vamos morrer. Simples assim. E complexo assim. Porque precisamos decidir o que é, afinal, a morte para nós e isso vai fazer diferença em como a gente vai viver.

As pessoas lidam com a morte de formas diferentes. Há graus de angústia da morte. Pensar nela geralmente nos paralisa porque é a única certeza que temos sobre o futuro. Como não podemos ficar paralisados, senão vira algo patológico, desenvolvemos formas de elaborar essa angústia do inevitável. Há quem não pense na morte, um grau zero que se toca com o grau cem: o medo é tanto que se evita falar sobre. Há quem desafie o medo da finitude buscando construir uma obra na terra que lhe perpetue, ou por meio dos filhos ou por meio de algo notável. Há quem busque na religião o exílio, a explicação e o conforto contra a ideia de que a morte seja o fim definitivo. Enfim, fato é que a angústia de morrer se faz presente de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau, como pensamento casual ou ideia que persegue cotidianamente. A morte é pauta inevitável da vida.

A angústia de morrer vai e vem durante nossa existência. As crianças são introduzidas à morte pelos bichinhos de estimação que se vão, pelas folhas secas caídas que encontram ao pé das árvores, pelos avós que desaparecem de repente. Quando contei às minhas filhas Clara (dez anos) e Marina (nove) sobre a morte do avô, as reações foram diferentes. Marina chorou demais, trocou de mal com Deus por lhe levar o avô. Clara se manteve em silêncio. Marina vez por outra me vem dizer que está com saudade do avô e chora. Clara, não. No entanto, pegando sua agenda escolar para verificar o que tinha de tarefa, vi escrito no calendário, no dia 1o de setembro, com sua letrinha redonda, “Vô, três meses. Saudade. :.(“. Meu pai morreu no dia 1o de julho. As crianças, como todo mundo, também têm formas singulares de elaborar a perda de quem amam.

Os adolescentes, em geral, desafiam a morte. Nesse período a angústia explode com força. Arriscam-se em atividades radicais, saltam de paraquedas, fazem rachas. Adoram ícones da morte, como Hitler. Lançam a catexia fortemente em jogos como Grand Theft Auto, em que a morte é banalizada. Alguns chegam mesmo a considerar o suicídio. Este é o recado: “Dona morte, não tenho medo de você. Não me venha com close errado”. Assim se cruza o tempo da juventude. A vida segue e viramos adultos.

Como adultos, as preocupações mudam. Vem a carreira profissional para cuidar. Vem a família para zelar. Deixamos a morte de lado porque a roda-vida exige demais e quase não deixa tempo para pensar nisso. Só que, de repente, duas coisas acontecem: a meia-idade e sua crise e a morte recorrente de pessoas da geração anterior. Parentes, tios, pais de amigos, os próprios amigos mais velhos, nossos pais. Eles começam a ir. À medida que eles vão, a meia-idade vem. Esse encontro inevitavelmente faz da morte uma presença constante nessa parte da vida que é, fato, a parte descendente da existência. Nascemos, crescemos, procriamos (alguns). O próximo passo é morrermos. Como lidar com essa certeza, que é a certeza derradeira da vida?

As pessoas lidam com a morte à espreita de várias formas. Por causa de sua história pessoal, de sua singularidade, umas buscam auxílio na família e nos amigos. Outras se aproximam da espiritualidade como forma inconsciente de buscar um seguro para o depois da morte. Alguns, mais cientes de sua fragilidade humana, vão à terapia. Outros, ainda, escrevem textos sobre a morte para lidar com a morte que se apresenta.

Meu pai morreu há três meses. Meu velho me deu um grande presente no fim da vida. Ele me fez redefinir minha relação com a morte. Eu tinha medo da morte. Hoje não tenho medo. Meu medo foi ressignificado. Hoje eu vejo a morte como algo que faz parte da vida, algo sobre o que você pode partilhar com outras pessoas, sem razão para ter medo ou vergonha de fazê-lo. Hoje eu converso sobre a morte, coisa que evitava fazer. Redimensionei a importância do velório como prática social. A presença em velórios tem uma função afetiva fundamental. São partículas de afeto que se juntam numa constelação de carinho e que ajudam a sustentar o corte abrupto do afeto roubado pela morte. Estar lá é dizer: eu me importo. E isso faz uma diferença imensa para quem está machucado.

Hoje a morte tem uma forma bem diferente para mim. Ela não é mais aquela morte de roupa preta com a foice na mão. Ela é bem distinta daquela morte dos nossos encontros cotidianos, em que a vemos como algo violento, assustador e tabu. Há outras mortes além daquela que a mídia nos entrega diariamente. Descobrir isso é libertador.

A lição que resume tudo isso é que o confronto com a morte não precisa ser um desespero. A morte sempre convoca um renascimento obrigatório de nós mesmos. Renascer é um sentido bom que podemos dar à morte porque pensar na morte requer pensar na vida. No fundo, eu acho que não seja da morte que as pessoas têm medo. É outra coisa muito mais trágica e perturbadora que nos assusta. Temos medo de nunca ter vivido. Assusta-nos chegar ao fim de nossos dias com a sensação de que jamais estivemos realmente vivos porque nunca conseguimos descobrir o que é a vida de fato. Mas sempre é tempo. Cuide de seus canteiros, “antes que chegue a morte ou coisa parecida e nos arraste moço sem ter visto a vida”. Cecília.

Em “Um conto de duas cidades”, Charles Dickens nos fala da morte. “Pois, à medida que eu me aproximo mais e mais do fim, viajo em um círculo mais e mais próximo do começo. Parece ser uma das formas de suavização e de preparo do caminho. Meu coração é tocado por lembranças que estavam há muito tempo adormecidas”. É isso. A morte é o nosso reencontro com um começo de que já não nos lembramos mais. Afinal, existirmos: a que será que se destina?

A morte é a noite da vida. É um laço que caça a infinitude. É o anzol que volta, sem falha, para fisgar a existência que se pensava eterna. É pau. É a pedra de Drummond. Mas definitivamente não é o fim do caminho.

Carta a uma menina de 18 anos

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Carta a uma menina de 18 anos

Menina de 18 anos,

Antes de tudo, parabéns pelos 18 anos. Eu sei que é uma data importante porque nossa sociedade simboliza tudo. Um dia alguém decidiu: é 18. Não é 17 nem 20. É 18. Que 18 seja, então.

Sabe, menina de 18 anos, eu um dia já fiz 18. E me lembro de como eu esperava acordar nesse dia e ver todas as portas e janelas do mundo abertas, com seus segredos desvendados. Viviam me dizendo que quando eu fizesse 18, eu começaria a entender. Eu esperei. Acordei naquele dia e descobri que ele era diferente dos outros só porque aqueles que gostam de mim fizeram questão de me dizer isso naquele dia. Mas nada de chaves de portas, nada de janelas escancaradas e nada de segredos do mundo. Então, não fique triste se você não viver um pentecostes particular. É assim com todo mundo. ‪#‎tamojunto‬.

Aos 18 a gente tem uma grande vantagem e nisso eu invejo você com aquela invejinha branca de quem se gosta: gás. Nossa! Como agente tem gás aos 18. Gás para experimentar, gás para tentar, gás para transcender. Eu, que já estou aqui nos 40, te digo: o gás diminui. É igual a um balão de gás no dia seguinte: vai perdendo fôlego, vai perdendo altura, vai murchando. Mas não perdemos a vontade de voar. Apenas o corpo não acompanha a cabeça, essa, sim, cada vez mais acelerada. Aproveite o seu gás, menina de dezoito anos.

Deixa eu fazer a coisa ficar mais bonita e tascar um latim: tempus fugit, carpe diem. O tempo foge, aproveite o dia. O tempo passa rapidola. Quando se vê já é meio-dia. Aí se pisca e já é meia-noite. Saiba aproveitar o tempo entre piscadas. Aproveite tudo, com fome, com vontade, com tudo. Não. Com tudo, não. Com 99% de ganas. Guarde 1% como garantia de sanidade, como escape. Porque tem gente boa nesse mundo. Mas tem gente má. Gente que vai te machucar de graça e aí você vai precisar desse um por cento reparador.

Menina de 18 anos, este texto já está ficando grande. Meninas de 18 não curtem textos longos. Então eu vou parar. Uma nota final: o melhor tempo é o que a gente está vivendo. Cada idade tem os seus humores, os seus gostos e os seus prazeres. Tempo: nele a gente sempre acha as razões do que veio antes e a gente não soube explicar então. Há sempre um tempo de explicações. Não apresse o rio porque ele corre sozinho. Meu recado para você daqui da frente na linha do tempo: tenha sonhos e serenidade. Porque é como diz o poeta: cada ser em si carrega o dom de ser capaz de ser feliz. Ninguém, menina de 18 anos, tem o direito de ser infeliz. Seja feliz. Carinho e uma boa vida. SF

Tudo que vai

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Fui deixar meu irmão no aeroporto. Foi ver o filho, que mora em Sampa. Chegamos em cima da hora do voo. Aeroporto lembra partidas e chegadas. Partidas e chegadas lembram o constante movimento das coisas. Coisas vêm e vão. Pessoas vêm e vão. O movimento faz parte da vida.

Não há ganho sem perda nem perda sem ganho. Isso é uma lei, como a da gravidade. Quando decidimos por algo ou alguém decide algo por nós, sempre há ganhos e sempre há perdas. Sempre. Quando somos nós que decidimos, o normal é que haja mais ganhos do que perdas na decisão. Assim a vida dá seus passos e vamos em frente. Quando são os outros que decidem por nós e, de novo, os ganhos se sobressaem diante das perdas, ótimo! A vida segue feliz, como se espera dela. No entanto, quando decidem por nós e há perdas dolorosas e ganhos irrisórios, ficamos machucados e tristes. E quando, enfim, nós decidimos por algo que nos traz mais perdas do que ganhos, quem sabe está na hora de uma boa conversa com o analista para tentar descobrir por que nos punimos nas nossas escolhas.

Veja você, caro leitor, que das quatro possibilidades lógicas expostas acima, apenas uma está fora do nosso alcance de decisão: quando decidem por nós e perdemos mais do que ganhamos. Nas outras possibilidades, ou a gente está no lucro ou a gente pode mudar o rumo das coisas. Saquei isso há algum tempo, quando fiz análise, exatamente para compreender por que alguém que eu amava decidiu me colocar numa grande perda com a qual eu não soube lidar sozinho. A partir dali, passei a concentrar esforços para maximizar meus ganhos nas decisões dos outros em que há uma perda muito grande para mim. Tem sido um exercício. É aí que tenho de colocar força: como transformar o pequeno ganho que veio da perda grande em um grande ganho, em um ganho que valha a pena.

Minha vida ficou bem mais feliz quando passei a maximizar o ganho das pessoas ou minimizar suas perdas quando a decisão depende de mim. Qualitativamente, sou mais realizado desde quando decidi escolher a felicidade e optar pelo ganho e não pela perda nas decisões que dependem de mim e, em não dependendo de mim, criar mecanismos de focar no ganho, ainda que mísero, quando alguém me faz perder. Qual a consequência prática desse perde-ganha todo?

De tudo isso decorre que é preciso que certas coisas partam, que a gente as apague da existência. Para funcionar a equação da felicidade, é preciso compreender que certas pessoas devem ir embora da nossa vida, devem ser riscadas do mapa. Parece forte, mas não é. É apenas necessário. Coisas que só nos trazem perdas e pessoas que nos sequestram os ganhos merecem a porta da rua, merecem pegar a boroca e rumar a venta para plagas outras quaisquer que não seja a nossa vida feliz. “Ain, mas é difícil…” É. Coldplay na veia: ninguém disse que seria fácil. No entanto, é preciso viver o luto de uma perda, fazer gastar a angústia, curtir a dor, como se curte o couro. E depois seguir. Morar no luto é transformá-lo em melancolia, que é o luto eterno que paralisa tudo. O luto é necessário; a melancolia é patológica. Que luto você ainda não viveu? Por quem você paralisou tudo na melancolia?

Nesse jogo da vida, ainda, entram os nossos. Os nossos são aqueles que gostam de nós. Eles desempenham um papel fundamental nessa matemática inexata da felicidade. São os que nos amam. Para alguém me amar é preciso ficar feliz quando estou feliz e triste quando estou triste. Amar é isso. Se o contrário ocorre (a felicidade com a tristeza alheia ou a tristeza com a felicidade do outro), tem-se um estranho amor do avesso, que é, também, patológico ou, no mínimo, um pecado capital mal resolvido. Porque amar, meus caros, envolve empatia. Amar dos vera inclui a capacidade de se colocar no lugar do outro e sentir por ele e com ele. Quem gosta de uma pessoa guarda o luto com ela, ratifica seus silêncios; quem gosta de alguém não fica prendendo o outro no lodo da melancolia, seja lá por que justificava for. Quem gosta de uma pessoa retifica suas engrenagens da alma. Quem, leitor querido, você diz que ama e cujo luto você não respeita? De quem você gosta, mas sente um prazer esquisito de ver na melancolia? Pense aí.

O aeroporto foi reformado. Eu quase errei a entrada. Mas chegamos a tempo. Meu irmão foi ver o filho e está muito feliz. Eu fiquei muito feliz por ele. Eu o amo. Na vida refeita, temos de aprender as novas entradas dos acontecimentos. Para aprender as novas é preciso desaprender as velhas, que não existem mais ou que, se existem, levam aonde não queremos mais ir. Assim chegaremos a tempo à felicidade. Para lembrar, como diz Fernando Pessoa, é preciso esquecer.

Hoje eu fico bem à vontade com muitas ausências que já foram presenças indispensáveis. Hoje eu já me acostumei a esquecer tudo que vai. Salas e quartos somem sem deixar vestígio. Rostos em pedaços se misturando com o que não sobrou do que eu sentia. Eu juro: eu nem me lembro mais. Bom escutar Capital de madrugada.

Flores no asfalto

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Foi Gandhi que disse: “Ninguém pode me magoar sem minha permissão”. Essa é uma verdade que aprendemos com a vida. A partir de determinada fase, começa-se a alegar a idade para justificar fazer certas coisas e deixar de fazer outras sem culpa. É uma espécie de salvo-conduto dado aos mais velhos. Um tipo de compensação pela perda do viço juvenil. O tempo é, de fato, um bom professor. Nossas rugas estão sempre a postos para lembrar que por determinado caminho não dá.

Tenho pensado muito nos ensinamentos do tempo. Uns fios brancos resolveram aparecer na minha cabeça aos 45 anos. Eles não vieram à toa, certamente. Penso que desses ensinamentos, o maior deles, que tem mudado minha vida de forma qualitativa, é o exercício da serenidade. Não posso mudar o mundo e suas opiniões. São bilhões de pessoas com zilhões de opiniões. Com as tecnologias de informação e suas redes sociais então, essas opiniões ganham o mundo com uma fertilidade nordestina. Assim, é imensa a possibilidade de você ler algo que lhe ofenda, não lhe agrade, lhe incomode, lhe dê náuseas. Dá vontade de responder a tudo e a todos, com veemência e contundência. É quando entra a serenidade lembrando que as pessoas têm o direito de ter suas opiniões e de manifestá-las. Verdade. Eu ainda prefiro um mundo em que temos o trabalho de superar as diferenças do que um em que optamos pelo caminho mais fácil de suprimir o que não nos é agradável, seja essa supressão pela força física ou simbólica. Aqui retomo Gandhi.

Se eu não posso mudar as opiniões que me machucam ou me desconfortam, eu posso mudar o fato de permitir que elas me machuquem e me atinjam. É esse o meu campo de ação.  Por conta da multiplicação de opiniões, que são bem-vindas porque a diversidade enriquece, somos bombardeados com todo tipo de informação. São informações úteis, inúteis, alegres, tristes, ácidas, simpáticas, doces, amargas, sinceras, chatas. Eu, no entanto, me surpreendo com as pessoas que fazem questão de focar na parte ruim dos adjetivos. Fui checar.

A título de experiência, fiz um acompanhamento dos posts do Facebook da minha linha do tempo. Nada científico. Mas constatei assustado que muita gente resmunga de tudo, fazendo da acidez e da amargura seu alimento diário. Você pode dizer: “Ain, mas é você que escolhe seus amigos no Face”. Isso. É justamente aqui que eu queria chegar. Qualquer pessoa tem o direito de dizer e pensar o que bem entender. Longe de mim proibi-la de falar ou de se manifestar. Até porque não tenho nem direito nem poder sobre isso. Mas, aí sim, eu tenho direito e tenho o poder de blindar minha mente dessa gente indesejável, ruim, escrota, que só vai me fazer mal. A serenidade a que me referi tem me ajudado a escolher melhor em que papo entrar e com quem interagir. A briga nem sempre é boa e estou aprendendo a só brigar a boa briga. Por conta disso, estou desamigando das redes digitais e da vida gente chata, ranzinza, vampira, daquelas pessoas que chegam e trazem um bafo quente que nos sufoca. Estou bloqueando das minhas relações os incômodos, os sem-limite, os sem-noção, os desagradáveis e os deselegantes, estes em homenagem a Sandra Annenberg. OK, leitor amigo. Nem todo mundo é assim o tempo todo. Os que são chatos part-time eu não desamigo nem bloqueio, mas ignoro solenemente provocações, comentários e posts que vão me puxar para o olho de um furação de tristeza, de desamor, de terra arrasada, de ranzinzice sem fim.

Fato é que cansei de ficar num cabo-de-guerra sobre um assunto em que o objetivo da pessoa não é discutir o assunto, mas sim brincar de cabo-de-guerra. Demorei para sacar isso, mas saquei. O tempo me deu o toque. Nada como a pátina da idade e estou adorando meus cabelos grisalhos.

Eu não quero que os chatos deixem de ser chatos. Por favor, que os chatos me entendam. Chatos são necessários para o equilíbrio do ecossistema. Quer ser chato? Vá fundo! Todo chato deve ter suas motivações, conscientes ou não. A chatice é seu escape psíquico. O que estou advogando é que eu não preciso conviver com essa gente, esses gafanhotos da paz alheia. Já há algum tempo, decidi me blindar dessa amargura toda, desse negativismo atávico, dessas reclamações recorrentes das mesmas bocas e mesmas teclas. Essas pessoas proliferam que nem Gremlins porque no mundo de hoje é mais fácil ser chato do que ser legal. Deve ser porque esquecer a dor é mais difícil do que lembrar a paz. A felicidade não deixa cicatrizes, como a tristeza. Há gente que adora lamber as feridas e não as deixar sarar. Escolhas.

Andando hoje em frente do meu condomínio, vi uma flor que ousou nascer no asfalto. Fiquei pensando por um minuto na ousadia. E na bela metáfora. O mundo é asfalto. Flores ousam brotar aqui e ali, desafiando o que se impõe como prevalente. Para onde olhar? Há pessoas que só veem os buracos e as lombadas do asfalto. Os seus olhos são cegos para o resto, para o desvio, para a deriva que se oferece. Saramago, sobre a cegueira: “É que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos”. Estou na fase de buscar flores e de ignorar solenemente o asfalto quente, áspero e esburacado. Ando cansado de rolar e ralar no asfalto da vida. Pode ser coisa da idade? Pode ser. Topo dividir sorrisos e gozos. Amarguras e choramingos, eu passo. Sem culpa. Estou ficando velho. Eu posso. Tenho o salvo-conduto. Porque ninguém pode me magoar sem minha permissão. Nem calar a flor que nasce teimosa no asfalto quente.

 

PS: Durante a escrita deste texto, recebi a triste notícia de que um tio da minha mulher morreu. A vida é tão efêmera. E tanta gente perdendo tempo com desamor e futrica.

Algarismos romanos

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Os posts têm de ser curtos e rápidos. Para serem lidos, aproveitados, comentados. Depois, novos posts. Sempre curtos. Movência. Nada de textos longos e insuportáveis, de mais de dois parágrafos. As modas passam voando. A fama é um pico que se atinge à velocidade de um foguete e que some, espatifando-se, à velocidade de um meteorito que entra na atmosfera. Quem lembra o nome do cara que a Katy Perry beijou no Rock in Rio? Quem lembra da Katy Perry e do Rock in Rio? É assim. Rápido, no estalar dos dedos, vapt-vupt. Meu medo inquieto está na constatação de que esse está se tornando o tempo para tudo: não só para as redes sociais digitais, mas para as redes sociais analógicas. Para os planos, para as amizades, para os afetos, para as ideologias, para a vida. Vejo a cada dia na minha linha do tempo os projetos em longo prazo sumir, sejam pessoais ou coletivos. Assisto a diárias conversões de ideais políticos e ideológicos em adesismo conveniente. Vejo amores jurados eternos se pulverizar em novos status de relacionamento e em novas juras de amor eterno, documentadas com fotos e vídeos pelo mundo, para celebrar aos outros a efemeridade permanente. Os amores são sempre eternos. Até o próximo amor eterno. Vejo amizades cúmplices que pareciam verdadeiras desaparecer como miragem por causa de uma necessidade urgente de aceitação, que joga fora o que parecia alicerçar algo duradouro e busca novas alianças mais eficazes no curtos prazo. Gente que contava sua alma e que hoje desvia o olhar para não ter de dizer oi. Miragem. Os olhos acostumados dos antigos têm de se acostumar com o mundo das miragens, do simulacro baudrillardiano. Sofre quem insiste na perenidade num mundo fugaz. Ninguém vive sem passado, sem história, e a história, hoje, dobra muito rápido a esquina da vida. Registra-se o presente como passado. O agora já é ontem e o amanhã. Aplica-se o filtro lomo na foto de hoje e resolve-se a questão do tempo. Penso nos meus planos, nas minhas amizades, nos meus afetos, nas minhas ideologias. Quanto tempo resistirão? É uma dúvida legítima que me inquieta a cada login. Dúvida que, se bobear, também inquieta quem conseguiu forçar a barra e ler até o fim este texto imenso. Porque é um texto imenso para o Facebook, anacrônico até, fora do tempo, escrito do século passado. Sim, eu sou um ser do século XX. Da época em que se estudava e se conhecia os algarismos romanos. Não, eu não tenho saudade do que passou na vontade de querer que voltasse e substituísse o que se tem. Isso é morar no impossível desejo da máquina do tempo. Eu tenho é nostalgia, que é a lembrança mansa da história de um tempo em que o tempo e o espaço eram outros, nem melhor, nem pior, apenas diferentes. E vou vivendo o tempo de hoje. Escolhi estudar isso academicamente para melhor entender a mim mesmo inserido nisso tudo. Pesquiso sobre isso, sobre sua linguagem, sobre sua discursividade, sobre seu funcionamento. Aqui sou eu, sujeito que acredita em afetos duradouros, em planos coletivos, em amizades reais, em ideologia, refletindo em voz alta. Não tenho respostas. Tenho muitas perguntas. As respostas estão aí. Estique o braço e pegue a que lhe seja conveniente no ar, no próximo post, no tweet que sobe rápido na tela. Mas se apresse: senão vem o Harlem Shake da hora, balança tudo, e muda tudo de novo. É isso. Logoff. Vou lavar a louça. SF, IX.III.MMXIII

Banzeiro

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“O tempo por vezes requer uma viagem ao interior de si. Parar sem pressa e pôr os pés em nascentes dos rios da alma que sequer imaginávamos que existissem. Olhar para cima e ver os filetes de sol da reflexão rasgando a copa dos problemas que cobrem nossa flora, nossas flores. Caminhar descalços dos conceitos e regras da cidade externa ao corpo e à alma, despidos do mundo que insiste em regrar nossos comportamentos: pôr regras naquilo que queremos solto. Mergulhar nos rios de contemplação, no silêncio quebrado pela paz da música dos uirapurus. Deixar a correnteza levar os despojos das sujeiras que grudaram em nós por causa de nossa caminhada no dia-a-dia. Fazer renascer o nosso sol depois de noites intermináveis; fazer brilhar nossas estrelas, esmaecidas pelas nuvens escuras que insistiram em pairar sobre nossas cabeças. Retonar à cidade da realidade ouvindo o tuque-tuque melódico do motor, deitado na rede da meditação, com o vento a lamber-nos o rosto e o banzeiro a ninar o barco no leito do rio. Fazer do inferno astral o verão boreal, a antítese, o contrário, o avesso da alma da ida. A linguagem é o silêncio. Só nos ouvimos no silêncio de dentro de nós. Por isso a rede. Por isso a viagem. Por isso o retorno ao silêncio, o estado mais puro da linguagem”. SF

Exílio

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Sempre fui um cara tímido. A timidez me fez ser professor. A timidez me fez palestrante. A timidez me fez escrever. Na sala de aula, num auditório lotado de uma feira literária nacional ou com os dedos no teclado escrevendo, eu exercito a minha subjetividade mais atrevida, a que vai lá e resolve, a que é assertiva e diz o que pensa, a que provoca reações e questionamentos, a que fustiga, a que flerta com sentidos. Mas ainda hoje sou incapaz de puxar uma conversa ao vivo com alguém ou ligar e falar com a moça do delivery. Na única vez em que fui ousado em coisas do coração, eu encontrei a minha companheira de vida. Mas eu estava fora de mim com o fim de um casamento em que fui descartado. Concluí que o desequilíbrio eventual é bom, daí. Porque reequilibra o universo.