BIDEN, TRUMP, BOLSONARO E DISCURSO

As reações à eleição de Biden e à derrota de Trump podem dizer, sob alguma perspectiva, como nós, brasileiros, entendemos a política. Foram basicamente quatro reações ao processo deles lá. Essas quatro reações sinalizam para o funcionamento de quatro discursos.A primeira reação é a do grupo de pessoas que dicotomizam tudo. É oito ou oitenta, ou é amigo ou é inimigo. É a turma tipicamente do Bolsonaro e daquilo que se tem chamado bolsonarismo. “Nós somos Trump? Então quem é Biden é inimigo”. Pouco interessa o mérito da discussão. O pacote é recebido fechado. Aí dentro rola tudo aquilo que a gente já sabe: delírio, fake news, acusação de fraude, China, teorias da conspiração. Tudo para dar conta do comportamento narciso-paranoico. É uma reação de manada automatizada e blocada, que recebe uma voz de comando, a ordem do dia, e a replica ad nauseam. Freud, em “Psicologia das Massas e a Análise do Eu” descreve bem esse grupo. Política aqui é guerra, confronto. “Ou nós ou eles.” E “eles” devem ser suprimidos, inclusive fisicamente, no limite, com todas as armas possíveis.
O segundo grupo é o grupo que surge da reação indiferente. “Não quero nem saber dessa eleição americana. Não tem nada a ver comigo”. Aqui, entram as pessoas que pensam a política como algo miudinho, paroquial e umbilical. “O que que eu ganho com isso? Nada? Então não me interessa.” É a turma que vota porque o irmão vai manter o cargo comissionado, porque o cara que ganhar vai continuar fazendo negócio com minha empresa e coisas assim. A política não tem a ver com a “pólis”, a cidade, o coletivo. Política aqui tem a ver com o “pragmaticus”, do latim, que significa “aquilo que é próprio dos negócios”. Os meus negócios, claro.
Um terceiro discurso é o que vem nas reações do tipo “o que vocês estão comemorando? Não tem nada pra celebrar!” É um discurso que às vezes defende uma retórica mais à esquerda, mas nega Marx – peguemos o Karl como referência, vá lá… – na sua premissa básica: o materialismo dialético como concepção filosófica, que, por sua vez, permite o exercício do materialismo histórico para o estudo da vida social, dos fenômenos da vida coletiva. Apesar da retórica, essa turma nega uma política entendida como dialética, como processo, como negociações. Esse discurso formulaicamente progressista (pero no mucho se pensarmos sua constituição) apareceu nas reações críticas e ácidas a quem celebrou a queda de Trump e de tudo o que ele representa. “Não há o que comemorar, gente!” Para esse discurso, o foco não foi posto na queda de Trump como um passo para mitigar os efeitos do fascismo na política mundial, mas foi colocado na eleição de Biden, “um imperialista porco”, “acusado de práticas pedófilas”, na base do “é tudo a mesma coisa.” É um discurso que não compreende que, em não havendo as condições ideais que gostaríamos que houvesse, às vezes é necessário ajudar, com o nariz tapado, a construir uma parede de madeira para derrubar depois em vez de se omitir e deixar que subam um muro de concreto, cujo trabalho para derrubar será muito maior. Para esse discurso, política aqui é a MINHA política. Tudo aquilo que não parta de mim ou não case exatamente com o que eu acredito não pode ser legitimado e é invalidado. “Não existe política possível sem mim.” É a política feita em caixinhas fechadas com um verniz de preocupação coletiva. É como se houvesse para esse sujeito e esse grupo uma reserva de legitimidade política. Só eles sabem, iluminados que são. E o que torna pior é que a formulação desse discurso é sempre bastante condescendente com quem não faz parte dele. Boa parte da esquerda brasileira mora aqui.
Por fim, há um quarto discurso. Ele vem numa quarta reação à eleição de Biden: a celebração de sua vitória porque essa vitória é a paráfrase de uma quebra de uma importante coluna do muro da política fascista na geopolítica mundial. Quem celebra a vitória de Biden comemora a derrota de Trump. Comemora o enfraquecimento e a perda de lastro do fantoche brasileiro. Comemora o papel decisivo da comunidade afro-americana nessa eleição e o que isso representa na reacomodação do poder político dessa comunidade, como um grande reflexo do Black Lives Matter. Comemora a ascensão de Kamala Harris, uma mulher, a um cargo historicamente de homens e isso não é pouca coisa para quem luta por um mundo menos machista e racista (“Ain, mas ela…” já dispara o cara do discurso acima!). Política aqui é entendida como uma construção permanente, feita de pequenas e grandes vitórias que merecem ser gozadas plenamente para, no momento seguinte, suspender a festa e retomar a luta, que não cessa. Política aqui é compreendida como um processo de negociação contínuo com o adversário – e não inimigo – conjuntural, negociação em que se perde no varejo para ganhar no atacado, naquilo que importa mais naquela dada conjuntura. Política aqui vai buscar o conceito de pólis, como cidadania, como inclusão de quem está fora porque não tem poder político, como negros, mulheres, índios e todo tipo de excluídos econômica e socialmente. Política aqui é superação da diferença – não supressão – por meio do diálogo, dos embates intelectualmente honestos e sem o ressentimento que mina a interlocução. É do jogo.
Política como guerra, como pragmática, como reserva de legitimidade ou como processo de negociação inclusivo e permanente. São quatro sentidos de política que circunscrevo a partir da nossa reação – nós, brasileiros – à eleição de Biden e Harris e à consequente derrota de Trump. Há outros sentidos de política? Sem dúvida. Essa é a beleza da polissemia da língua. Mas trago esses quatro para pensar como esses discursos definem nossas práticas no dia a dia em relação à política, não só stricto sensu, não só em relação à eleição americana, mas também na política da vida do homem banal, como diria Foucault.
Descrever o funcionamento do discurso é o baratinho da Análise de Discurso. Perceber-se como encaixado em um ou outro discurso já é trabalho do dispositivo ideológico de interpretação. Porque todos nós, inescapavelmente, significamos de algum lugar. Não sem resistência, não sem deslocamentos, não sem dores e angústias. E você, leitor ou leitora? Qual é o seu lugar na política?
Pai é bem mais que um pau
Recebi alguns pedidos para me manifestar sobre o lance da Natura ter chamado o Thammy Miranda para fazer o comercial do Dia dos Pais. Vou abordar o assunto sobre o ponto de vista discursivo, que é o meu baratinho.
Nessa discussão toda, há um embate claro sobre o sentido de família. De um lado, há um discurso de cunho religioso fundamentalista, tipo o dos malafaias da vida, que foca em família a partir do ponto de vista da forma, mais especificamente da forma biológica. Esse discurso entende família a partir de uma concepção pênis/vagina. Só há família se houver um homem e uma mulher, biologicamente definidos. Adão e Eva. O que acontece nessa família é menos importante. Pouco importa se não há uma relação saudável do casal, pouco importa que o pênis e a vagina não mais se tocam porque o casal leva a relação com a barriga. Para quem foca na forma, a discussão sobre a qualidade da relação é geralmente secundarizada.
Do outro lado da discussão, há um discurso que compreende família não a partir da forma, mas de seu funcionamento. Para esse outro discurso, família é um lugar feito por gente que se ama, se cuida, se protege, que dá amor e provê o afeto necessário para preparar uma eventual criança para ser um adulto sadio e feliz. Família, então, é algo independente da forma: o casal pode ter uma relação heteroafetiva, homoafetiva ou trans, como o Thammy. Tanto faz a forma desde que a dinâmica do funcionamento da relação seja a fonte de afeto sadio.
Essa dicotomia discursiva explica a grita sobre o comercial da Natura. Quem se identifica com o discurso do comercial, com a presença do Thammy como o pai homenageado, que privilegia o funcionamento e não a forma biológica, acha bacana demais o foco na diversidade. Porque pai é uma função simbólica, mais do que biológica, mais do um fornecedor de esperma. Quem não se identifica ou se ofende com a Natura, por outro lado, esperneia porque acha que chamar Thammy para um comercial do Dia dos Pais é uma afronta ao que é correto, ou, pelo menos, àquilo que seu discurso sustenta como correto, de Deus. Mas qual é sua concepção de Deus? Um outro texto seria necessário só para discutir isso, claro.
Há ainda uma outra discussão atravessada nessa: sobre moral e ética. Ambas dão liga à sociedade. Mas a moral é individual, para mim, para dentro. A ética é social, para o outro, para fora. Sua moral pode dizer para você que uma relação homoafetiva não é aceitável, não é correta, não é de Deus, whatever. É imoral, ou seja, fora da moral. Da sua moral. E por isso você não se envolve numa relação homoafetiva. Até aí é legítimo. Agora, querer impor a sua moral aos outros, a ferro e fogo, na marra, não é ético. Os outros têm direto à sua moral também.
“Ain, mas como se resolve isso?”. Isso é a diversidade social, amigo. Concordamos com certos discursos e de outros discordamos. Não só nessa questão da sexualidade. Mas na questão da educação, da saúde, das questões indígenas, ambientais, político-partidárias. Resolvemos essas questões nos organizando social e politicamente, buscando gestar garantias coletivas. A união civil entre pessoas do mesmo sexo foi declarada legal pelo Supremo Tribunal Federal em maio de 2011. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução que permitiu aos cartórios registrarem casamentos homoafetivos. Para mim, que penso em casamento como funcionamento e não como forma, isso foi um grande avanço. É desse tipo de organização que estou falando. A luta política na pólis. Ainda mais em tempos de um presidente xexelento, que defende o discurso da forma.
Tenho visto a proposta de Cancelamento, posta por alguns, de ambos os lados. Cancela a Natura. Cancela o Malafaia. O Cancelamento lacra. Mas é uma bobagem em longo prazo e uma porta muito grande para a intolerância e para o linchamento em curto prazo. Para mim, e tenho dito isso sempre que posso, Cancelamento é um atestado de incapacidade de organização social para implementação de mudança efetiva por vias políticas, que dão, essas sim, garantias para além dos holofotes imediatos das redes sociais.
Abordei aqui dois discursos sobre família. Só que, óbvio, a coisa não é tão arrumadinha quanto eu coloquei no texto, não. Atravessados nessa discussão, há outros discursos. Posso concordar com a Natura pela escolha do Thammy para o comercial, que vai ao encontro do que eu penso quanto às relações afetivas, mas discordar da Natura quanto a algumas de suas escolhas de sustentabilidade, por exemplo, entrando em jogo aí outro discurso, o ambiental. Por isso que dizemos: política é conjuntura. Meu aliado agora pode ser meu adversário amanhã. Depende do enfoque. Depende do discurso. É assim que funciona. Movimento. Movência.
Enfim, grosso modo, viver é isso: é fazer escolhas, é se posicionar. Achar que uma família se faz com um pênis e uma vagina é reduzir ao raso a questão da qualidade de uma relação que precisa de afeto, de amor. Como psicólogo que sou, defendo cada vez mais a ideia fundamental de que o afeto da infância é o que dá liga à saúde psíquica na vida adulta.
É Dia dos Pais. E pai é lugar simbólico, não é só biológico. É um lugar de quem tem pênis ou não, pouco importa, em uma relação homoafetiva ou heteroafetiva. Podem ocupar esse lugar o avô, a avó, o tio, a tia, o padrasto, a madrasta, o padrinho, a madrinha, um amigo da família.
Porque, convenhamos, tem pai que tudo o que fez na geração de um filho foi entrar com o pau para fecundar. E às vezes numa transa xoxa, sem graça. Que esses pais que são só biológicos e que se abstêm de ocupar seu lugar imprescindível de provedor de afeto fiquem bem longe do comercial da Natura ou de qualquer outro comercial do Dia dos Pais. Parabéns, Thammy. Parabéns, a todos os pais que não são só paus.

Faltas e presenças
Ditos a uma paciente que ainda não tive.
– Sabe, doutor… hoje estava olhando meu guarda-roupas. Tem roupas que comprei e nunca usei. É comum eu até dar roupas que nunca tenha usado. E continuo comprando. Minha mãe me chamou atenção pra isso. Aí eu dei uma googlada e descobri que posso sofrer de TCC, Transtorno do Comprar Compulsivo.
– Ah, o doutor Google tem todos os diagnósticos, né?
– Eu não devia, né? Mas sabe como é…
– Veja, nem toda mania de comprar é Transtorno do Comprar Compulsivo. O TCC geralmente tem efeitos desastrosos sobre as finanças. É o seu caso?
– Não. De jeito nenhum. Tenho bom controle sobre minha vida financeira. Mas reconheço que gosto de comprar, escondido de todos às vezes, rs…
– Sei… Seu prazer não está em comprar. Comprar é só uma parte do processo para o gozo, que está em outro lugar. Seu prazer está em dar e, com isso, mostrar aos outros e a si mesma que você pode tanto comprar quanto se dar ao luxo de se desfazer sem sequer ter usado. Os outros precisam saber de suas conquistas financeiras. Vamos falar da sua infância?
– Quer saber se me faltou algo, né, doutor?
– Fico feliz com pacientes que com o tempo vão entendendo a dinâmica do processo terapêutico. Mas, sim, voltemos à sua infância…

Acunpultura inversa
A gente se amou muito. Mas um dia eu a machuquei. Ela, para se defender, colocou todos os meus defeitos e mais alguns num saco e jogou com força sobre o meu rosto. No fundo do saco, amassada e rota numa borra de mágoa, a parte bonita da nossa história.

Amar na ausência
Há pessoas que amamos e cuja distância física nos machuca. Por isso, penso que momentos com aqueles a quem amamos, que trazemos dentro de nós – ainda que o dia a dia deles nos faça esquecer – precisam ser aproveitados ao máximo. Se você não pode ficar junto de quem você ama durante um ano, fique um mês. Se não der um mês, fique uma semana. Se não der uma semana, fique um dia. Se não der um dia, fique um minuto. Mas fique intenso, olhando nos olhos, ouvindo, segurando a mão. Viva a plenitude da presença. Porque a ausência de quem a gente ama é a regra do mundo. E aprender a amar na ausência leva tempo. E dói muito.
O espelho de Narciso
As relações são construções dinâmicas entre duas pessoas. Portanto, ambas levam para a relação sua história de vida, com suas questões e construções simbólicas. Uma relação, seja ela amor eros ou ágape, “vai dar certo” quando houver conciliação nesse encontro de demandas e o prazer gerado pelo encontro for maior do que a dor. Nunca há o encaixe perfeito porque as pessoas têm histórias diferentes. Sempre perdemos no varejo para ganhar no atacado. Relação é ajuste constante do GPS afetivo, é um eterno decidir entre o que deixo ir em nome do que quero que fique.
No entanto, quando um dos polos é narcisista, ele não só não cederá a parte que lhe cabe para suprir o outro na negociação, como também jamais reconhecerá que precisa deixar de olhar o espelho para criar laços reais e não apenas ilusórios, frágeis e passageiros. O outro, que não é o eu Narciso e perfeito, é quem sempre falha, é quem sempre deve, é o que sempre ameaça.
No amor eros, o desbalanço extremo – quando só um entrega – leva a amores pesados, tóxicos, abusivos. Apenas uma parte se alimenta, gafanhotando o parceiro, que fica por alguma razão que precisa ser evidenciada e elaborada. Mas, mesmo difícil, há a sempre a possibilidade do rompimento e do nunca mais. É preciso cortar os tubos que conectam oxigênio e o afeto que corre unilateralmente. Para relações abusivas não há meio-termo.
No amor ágape, o desbalanço também leva a sofrimento. Muitas vezes, é um sofrimento igualmente causado por um narcisismo pesado que coloca a pessoa no polo do egoísmo afetivo, em que não se importa de fato com o outro, somente consigo. Quando o laço é de família, por exemplo, a dor é mais perene porque o rompimento é mais difícil, mas é uma possibilidade real convocada pela saúde psíquica de quem tem sobre si o derramamento de sangue de uma ferida que não é sua. Sangrar nos outros é um recurso do narcisista, preocupado demais em se olhar no espelho para cuidar de coisas que acha que são desimportantes e secundárias.
Enfim, relações só valem a pena se houver ganha-ganha na negociação das diferenças. Se você não está disposto a negociar, se suas relações são frágeis e ilusórias, se seus laços se desfazem com o sopro, pode ser que você precise quebrar o espelho ou atravessá-lo, tal qual Alice, para perceber que de repente as coisas são o contrário do que se pensa, que o vilão não é outro, que há feridas a cuidar.
Pode ser que você esteja também na outra ponta, que busca inconscientemente essas relações frágeis e se apaixone pelos narcisos para purgar algo que rasgou lá atrás. Terapia é uma boa forma de identificar o que rompeu e interromper esse ciclo de dependência. Para o Narciso, terapia é sempre uma boa forma de quebrar o espelho. Embora isso seja de uma dor imensa, pois Narciso acha feio o que não é espelho e acha que, por isso, não precisa de ninguém. Ele se basta. E segue na sua antropofagia afetiva, passando por cima dos afetos das pessoas de quem deveria cuidar.

Espelho, espelho meu.

É preciso compreender de onde vêm a raiva e animosidade em relação a certas pessoas. É mais provável que venham de questões nossas não percebidas e mal resolvidas do que da própria pessoa alvo da animosidade. Sentidos. É necessário dar sentidos às coisas e se implicar no sentido desses sentidos para melhorar a vida e ser mais feliz, que é o que interessa.
Arlequim

Arlequim carrega um manto. Por onde passa, pega um pedaço de tecido e costura no manto. Cada retalho é a memória do lugar, das pessoas, das vivências. Cada um de nós tem o seu manto de Arlequim. Retalhos coloridos, em preto-e-branco, perfumados, fedorentos, inteiros, rotos, bem costurados, por costurar melhor, mostráveis, escondidos. Manto nas costas, vez por outra olhamos para o pano e lembramos uma a uma as histórias dos retalhos. Enquanto lembramos, assobiamos as músicas que tocavam quando o costurávamos ao mosaico de nossa história. É ele que nos dá identidade, memória, história. É o manto da nossa trajetória que nos faz ser o que somos, com as delícias e dores de ser o que somos. Com as verdades, com os segredos. E o seu manto? Quão belo é?
Um lugar para colocar as coisas
Resolvi reativar meu site. Atualizei umas coisas, acrescentei uma páginas. A ideia é ter aqui as coisas que faço. Sinta-se em casa. Seja bem-vindo, seja bem-vinda!
Blackbird: da delicadeza das relações

Eu sempre amei música. Até hoje a música tem um espaço fundamental no tecido da minha vida afetiva. É uma linha essencial no meu linho. Eu conto minha vida pelas músicas que canto. Ouço uma música e sei exatamente a época em que tocava porque ela me tocou à época em que era tocada. Pequenos filmetes desfilam em minha mente quando são as canções que nos põem para tocar.
Quando eu tinha meus quinze, dezesseis anos, todo sábado à tarde eu transformava o meu quarto em meu templo. Minha oração, ligação com o transcendental, brotava do som que eu ouvia dos discos-bolacha que eu punha para escutar no meu três-em-um Gradiente. Quando a agulha descia sobre a faixa escolhida e começava o seu chiado, eu fechava os olhos e entrava em contato com dimensões cuja existência só viria a descobrir mais de trinta anos depois, lendo os livros de Patrick Drouot.
Queen, The Mammas and the Pappas, Pink Floyd, mas, sobretudo, Beatles. O piano de Let it Be, o crescendo alucinante de A Day in the Life, a declaração de amor crua, direta e visceral em I Want You (She´s so Heavy) e o desespero de apaixonado e enfeitiçado por algo nela, bailando ao som do solo da guitarra de George Harrison em Something. Cada canção dos Beatles é uma história, um sentimento, uma sensação. É vida. Eu era um menino magrelo, desengonçado, ignorado pelas mulheres, mais interessadas nos Menudos, nos garotões sarados, tatuados e bonitos da escola, que sabiam dançar. Ou nos caras que dirigiam um Escort XR-3. O ignorado aqui, let it be, escrevia boa parte de sua existência, recluso no seu universo particular, pelas músicas de Lennon e McCartney. Eu era um estranho no mundo dos afetos. Só tinha a oferecer uns textos mal escritos e nada mais. No entanto, eu era um estranho que, orgulhoso, tinha todos os discos do Fab4. E eu ouvia todos os discos. E eu sabia, como sei até hoje, todas as letras e suas histórias. Eu era o fã que lia os livros biográficos dos caras. Minha parede do quarto tinha um quadro com a foto do John. Eu acordava e dormia olhando aquele sujeito que me ensinou que, puta merda, pelo amor vale tudo. Até deixar os Beatles.
No meu mundinho fechado, mas incrível, eu aprendi a ler as pessoas pelas músicas. Eu compreendi que tudo tem significado; eu entendi que significado é história e, por ser história, todo sentido é dinâmico e pode mudar. Dei-me conta de que são os significados que damos ao mundo que regem nossa existência. Todo esse aprendizado lá de trás, vejam que coisa!, me levou a estudar linguagem, discurso e me trouxe ao encontro da psicologia no ocaso da vida. Estava escrito? Maktub mesmo? Whatever…
Voltando ao meu quarto em 1983, eu me vejo ouvindo a guitarra seca de Blackbird. Paul McCartney fez essa música pensando nos conflitos raciais no Alabama e no Mississipi em 1968, ano em que nasci. “Bird” é uma gíria britânica para “girl”. Blackbird faz referência às mulheres negras que sofriam o que sofriam então. É uma música política. Sempre adorei Blackbird. É o tipo de música que fica excelente em qualquer versão. Mas, como sempre dei meus sentidos às músicas, em um exercício muito particular, com Blackbird não foi diferente.
Blackbird singing in the dead of night/Take these broken wings and learn to fly/All your life you were only waiting for this moment to arise/Blackbird singing in the dead of night/ Take these sunken eyes and learn to see/All your life you were only waiting for this moment to be free/Blackbird fly, blackbird fly/Into the light of the dark black night.
Para mim, essa canção fala de vida afetiva, de história, do que a psicanálise lacaniana chama de Real. Quem de nós nunca foi um pássaro que cantou na solidão da noite? Quem de nós nunca viveu o inferno de uma relação em que se apostou a vida e que falhou? Sim, porque a vida vem e não pede licença. Às vezes atropela. Quebra as asas. Pela vocação da felicidade, as pessoas de repente pegam essas asas quebradas e se lançam, ainda que relutantes, a reaprender a voar. Só esperam, arredias, o momento se oferecer. Há um momento certo para amar? Enfim, aguardam a hora em que a luz reparadora entra pela fresta da ferida, pelo rasgo da existência.
Pássaros cantando na solidão da noite – quem nunca? Quantas vezes nos vimos tomando os olhos encovados pelas olheiras e tivemos de reaprender a olhar o que a vida borrou e transformou em experiência de dor? Rever o borrado pela dor dá um trabalho filho da puta. Corre sangue até. Mas sempre chega o momento de se libertar do que acorrentou, do que passou e fez mal. Que metáfora linda para se falar da necessidade de se continuar vivendo depois que a vida aprontou, bateu, derrubou! É a função da arte, não é? Beatles, não é? Todos, absolutamente, todos somos blackbirds, enfim. Enfim.
Daí o título deste texto. Blackbird sempre me faz pensar na delicadeza das relações, sabe? Entende? Toda relação é especial. Toda relação merece ser tratada como tal. Na minha cabeça, relação afetiva só existe no todo, corpo e alma. Foi essa a dinâmica que me trouxe até aqui nesses 50 anos. É geracional. É claro que, dã, eu não vivo no século 16 para achar que não há pessoas que veem no sexo sem conexão afetiva uma opção legítima. Ok. Mas não eu. Legitimamente também, isso me é pouco. Por isso que sempre fui buscar a alma quando foi necessário, feito Robin Williams, que vai no inferno em “Amor além da vida”.
Agora, ninguém pode esquecer que se somos, o outro também é um blackbird. A ninguém, que diz amar, é dada a opção de ignorar que o outro quebrou suas asas no caminho, que sentiu dores, que tem sua história. A ninguém é garantido o direito do descuido de ignorar que se há olheiras é porque houve noites insones. Se há amor, se há carinho, há de haver cuidado. Querer bem passa pelo momento, inclusive, de se afastar quando o outro precisa respirar. A cena é linda: tomar delicadamente nas mãos o pássaro frágil que é alma alheia e abrir as mãos para deixar o pássaro reaprender a voar depois do cuidado. Ninguém ama o outro a não ser o tendo em liberdade plena. Às vezes, blackbird, é preciso voar para ficar. Às vezes é preciso compreender que ficar vendo as rodas passarem é uma opção legítima.
Toda relação é delicada. Delicada não só no sentido de merecer cuidado, mas também no sentido de ser cuidadosamente bonita. Cuidado. A gente precisa cuidar do outro. A gente precisa entender que todo encontro afetivo é um encontro de histórias. Qual é a sua asa quebrada? Como quebrou? A minha é essa e foi assim, sabe? Por que das suas olheiras profundas? O que as causou? As minhas vêm do meu choro e meu choro vem daqui, ó, deixa eu te contar, eu quero que você saiba. Amar é mais do que saber só as coisas boas. Arriscaria dizer que ama mesmo quem conhece os porquês das cicatrizes do outro e os acolhe no processo de (re)construção afetiva como elemento que dá liga à intimidade. Amar é, sobretudo, saber escutar. É conversar. É deixar claro. É não surpreender negativamente.
É. A terceira faixa do lado A de “A hard day´s night” é If I Fell. Há um pedido tão delicado de cuidado em If I Fell. Enquanto escrevia só me veio à mente sua melodia.
If I fell in love with you/Would you promise to be true/And help me understand/’Cause I’ve been in love before/And I found that love was more/Than just holding hands./If I give my heart to you/I must be sure from the very start that you would love me more than her/ If I trust in you, oh please, don’t run and hide/If I love you too, oh please/Don’t hurt my pride like her/ ‘Cause I couldn’t stand the pain/And I would be sad if our new love was in vain…
Amar é, definitivamente, muito mais do que andar de mãos dadas. Amar é voar em par. Às vezes no escuro. Às vezes à noite. Às vezes com as asas quebradas, blackbird. Com as asas quebradas.
Não tenho mais meu o quarto com o quadro de John. Não tenho mais os LPs. Mas ainda posso ver as rodas passarem. Ainda tenho os Beatles. Vou ouvir Beatles.
- ← Anterior
- 1
- 2
- 3
- …
- 72
- Próximo →