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Sérgio Freire
31.10.2022

“Erga essa cabeça, mete o pé e vai na fé
Manda essa tristeza embora
Basta acreditar que um novo dia vai raiar
Sua hora vai chegar”

Agora que minha rouquidão passou, já consigo escrever. Como boa parte dos brasileiros que se preocupa com um projeto de país acolhedor dos grupos minorizados e menos privilegiados, fiz campanha, votei, acompanhei a apuração, explodi de alegria e soltei rojões quando virou. Depois dancei leve na sala com minha mulher e minhas filhas. Dormi com uma alegria que há muito não sentia. Ressaca da boa.

Lula ganhou. Ganhamos. Isso significa tanta coisa para tanta gente que passou quatro anos sob as nuvens de um (des)governo mais preocupado com a destruição do meio ambiente e o desmonte de sua fiscalização, com a ampliação das aprovações de agrotóxicos para beneficiar o agronegócio a um custo altíssimo, com o exercício da necropolítica na saúde e na economia sempre com a promessa de melhora pelo rolando-lero do Guedes, com suas damares e a disseminação do preconceito de todo tipo, com a depredação do Brasil sob todos os aspectos em que você pensar. Pense aí. Qualquer um. E vai ver o desastre que foi.

Um presidente et caterva muito mais preocupados com seus projetos pessoais e com os dólares de ministros em paraísos fiscais do que com bem-estar social. O Brasil, que antes era um player de peso, sumiu do mapa mundi da geopolítica mundial com este presidente minúsculo, que vai ser enxotado do Palácio do Planalto em janeiro. Mas Lula mal foi eleito e o mundo já correu para ele.

“Ain, mas o país está dividido”. Sempre esteve. Quem conhece um pouco de história ou estudou sociologia básica sabe que este país sempre esteve dividido. Isso desde a época das capitanias hereditárias, com os projetos de escravidão da população negra e com as recorrentes e históricas investidas contra as populações originárias. Essa divisão está no DNA brasileiro tanto quanto a mais balada mistura de raças. Convoco também o bom e velho Marx para nos lembrar da divisão de classes, que sempre recebeu roupagens diferenciadas, mas que sempre também fez questão de deixar muito claro quem manda nesse país.

Há análises e análises mostrando como chegamos aonde chegamos. O golpe parlamentar em Dilma, fomentado pelas passeatas dos 20 centavos em 2013, foi, a meu ver, a dobra do origami. Depois veio a Lava-Jato e todo o lawfare que tirou Lula da eleição de 2018, lawfare hoje desmontado pelas ilegalidades de um juiz que hoje rasteja nos cantos fedorentos da história. Tudo isso foi amplificado pela grande imprensa, criando um caldo que levou ao desejo da eleição do “novo”. Foi nesse cenário que Bolsonaro se elegeu.

Além do capitão, coronéis, delegados e toda uma reculhamba de parlamentares foi eleita também. Governadores sem passado político entraram nesse vácuo, como Romeu Zema (MG) e Wilson Lima (AM). Esses parlamentares da lei, truculentos e da pancada, e esses governadores “novos” – entre todas as aspas – representavam, na cabeça de muitos brasileiros, quem iria restituir a ordem no país. A psicanálise talvez nos sussurrasse nessa hora que o povo brasileiro, em grande parte, estava em busca de um pai disciplinador da desorganização social. E veio Bolsonaro.

Pandemia. O mundo sem saber direito o que fazer. Alguns poucos governantes, como a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, ouviram a ciência, fizeram barreira sanitária, fechando seus países e foram bem-sucedidos no combate ao inimigo desconhecido. Os países da Europa ficaram no meio-termo entre a proteção da vida com lockdowns e a manutenção da economia. As mortes só aumentaram e tiveram de voltar atrás. O presidente do Brasil, na má companhia de Trump nos EUA, Lukashenko na Bielorus – aquele que queria curar a COVID com vodka – e Obrador no México, escolheram uma política negacionista, ignorando a OMS e atrasando as medidas necessárias. No Brasil, a compra de vacinas se adquiridas na temporalidade certa poderia ter salvado, segundo especialistas, mais de 300 mil pessoas da morte. Além disso, os mercadores da morte ainda negociavam propinas dentro do Ministério da Saúde em cima de doses que faltavam à população. Experimentavam ao modo nazista a imunidade de rebanho em Manaus, o que causou um dos momentos mais dolorosos na história da minha cidade. Dor e caos amplificados pela falta de oxigênio nos hospitais, causada pela negligência do governo federal e do Estado do Amazonas. É pouco um parágrafo para falar da pandemia e suas consequências no Brasil, com as hoje quase 700 mil mortes. E esse cenário de negacionismo mundial ainda foi piorado no Brasil pelo papel das igrejas neopentecostais e seus pastores, que arregaçaram as portas dos templos para a política partidária, deixando um tal de Jesus em segundo plano.

Com todo o cenário acima, com o histórico de Bolsonaro e a sua personalidade conhecidamente escrota no Congresso, as rachadinhas da família, o desgoverno total em quatro anos, vem a pergunta: como explicar então os 58 milhões de votos que ele ainda teve? Recorro de novo à psicanálise e ao psicanalista Christian Dunker. Para Dunker, uma parcela significativa dos bolsonaristas se sente traída pelo PT. Embora tenha conseguido ascensão social, a classe trabalhadora esperava viver em melhores condições. Sem associar os problemas atuais à figura do atual presidente, “que age como se não fosse propriamente um governo”, resta a decepção com quem representa o estado para essas pessoas – Lula e Dilma. “Elas se voltam com uma certa agressividade, com um certo ódio, para aqueles em quem localizam a falsa promessa”, diz o psicanalista. Sobre o perfil psicológico de Bolsonaro, Dunker diz que suas atitudes se explicam pela patologia dos tiranos: “Para ser um tirano eficaz, o sujeito tem que ser meio débil, meio incapaz de separar o público do privado”. Bolsonaro pode ser visto, assim, entre outras coisas ruins, também como um sintoma de um Brasil neurótico.

Além dos ressentidos – daí a agressividade, a receptividade ao discurso armamentista e golpista com pedido de AI-5 – , há a ponta de cima da pirâmide social, a “elite do atraso”, como nomeou Jessé de Souza. Dona dos meios de produção, essa elite apoia e aplaude o governo de Bolsonaro com suas políticas de arroxo a direitos trabalhistas, o que, claro, aumenta os seus lucros. Luciano Hang, o Véio sonegador da Havan, é um exemplo dessa gente. Mas o seu Zé, da taberna, também veste essa camisa, no entremeio entre o grupo um e dois. Boa parte da classe média, com suas bolsas de grife e seus perfumes doces, também veste a canarinho e esteve aí pendurando a bandeira nas sacadas e nos carros. Se a escolha dos ressentidos é uma inconsciente vendeta do desejo não realizado, a elite rica desse país fez e faz uma escolha pragmática pelo viés do capitalismo mais selvagem mesmo. E a classe média que embarcou nessa se mira numa riqueza que de fato não tem, mas pensa que tem, coitada. Um terceiro grupo nessa equação de sustentação de Bolsonaro é o das igrejas evangélicas. Em última instância, elas também se movem pelo dinheiro, mas com um discurso transverso da pauta de costumes para caber melhor. São as máquinas de dinheiro dos malafaias, macedos e os valadões da vida. Essas igrejas estão hoje corroídas por dentro na sua prática do exercício religioso e são, mais do que já foram, currais político-eleitorais, na cara dura. Usam Jesus como fiador com uma procuração falsa.

Com tudo isso, Lula ganhou. Por isso foi tão apertado. Lula segurou no voto os bilhões do orçamento secreto, a enxurrada do dinheiro dos empresários jogada na campanha de Bolsonaro, a sabotagem do governo nas ações da PRF no dia das eleições, o ódio ressentido dos mais humildes e a máquina religiosa do evangelismo capitalista. Além, claro, de boa parte da imprensa que prefere um projeto mais liberal em relação ao que Lula oferece. Um feito e tanto. Mas e agora?

Diferente do que se acostumou a chamar de bolsonarismo – e eu sugiro que a gente abandone o uso desse termo para não sedimentá-lo –, que tem como prática lidar com o contrário pela supressão, silenciamento e violência – às vezes aniquilamento físico mesmo – temos com a eleição de Lula de buscar um outro caminho. É preciso sair desse Fascismo e reestabelecer os processos democráticos de respeito à alteridade.

Em vez de suprimir o outro, precisamos superar esse cenário e minar o protagonismo dessa gente pela organização social. Sim, mas como fazer isso? Por meio da ampliação das práticas democráticas e da reconquista de espaços sociais perdidos. Por meio do exercício real da redistribuição de renda que devolva à população a sensação de bem-estar que um dia já teve, inclusive num próprio governo Lula passado. Por meio do aumento do Estado de bem-estar social, com acesso à saúde, educação e cultura. Por meio de uma política agressiva de desarmamento que mude a cultura do aniquilamento que se estabeleceu com a multiplicação de clube de tiros e acesso a armas patrocinado por Bolsonaro. Por meio da regulação do agronegócio na sua parte nefasta e irresponsável, dos agrotóxicos, que aumentam os lucros, lucros hoje que não voltam para políticas públicas, mas são canalizados para o fomento do desmatamento e do financiamento da agropolítica vendendo a imagem de que o agro é pop, quando só a parte responsável dele merece ser. Pelo cuidado draconiano com a proteção do meio ambiente. Por meio do retorno da demarcação de terras indígenas. Por meio da taxação e de maior controle social sobre igrejas, para que voltem a ser um lugar de relação do sujeito com a espiritualidade e não esses cassinos que hoje são, resguardadas as exceções de sempre na minha crítica, claro. Por meio da criação e ampliação de políticas públicas para as populações minorizadas – negros, índios, mulheres, LGBTQIA+, PCDs. Confesso que retomada das conferências nacionais anunciada por Lula em seu discurso em São Paulo deu um alento nessa direção.

O caminho é longo. Vai dar muito trabalho. Lula foi eleito para isso. Lula foi eleito por isso. Porque acreditamos num país que considere essas coisas. Ele não vai conseguir fazer tudo isso e mais outras coisas igualmente necessárias, claro. Mas a trilha em que o país volta a pisar em primeiro de janeiro do ano que vem certamente vai nessa direção. Vamos deixar para trás essa página infeliz da nossa história, responsabilizando quem deve ser responsabilizado. Sem revanchismo, mas sem leniência também. Deixamos frouxa a cobrança dos responsáveis pelos crimes da ditadura militar e isso nos fez muito mal como país. Não podemos repetir o erro e devemos responsabilizar, “dentro das quatro linhas da constituição”, quem deve ser responsabilizado. Derrotar o pensamento de extrema-direita no país deve ser a obsessão política dos próximos anos, comum a todos os democratas – de direita, centro ou esquerda.

Porque quem cultiva a semente do amor segue em frente e não se apavora. Se na vida encontrar dissabor vai saber esperar a sua hora. Cuspamos então o dissabor. Chega. Então, meu amigo e minha amiga, erga essa cabeça, meta o pé e vai na fé. Manda essa tristeza embora. Basta acreditar que um novo dia vai raiar. O sambinha diz, com propriedade, que na vida é preciso aprender que se colhe o bem que plantar. É Deus quem aponta a estrela que tem que brilhar. E Ele apontou na eleição de domingo. Vamos lá, Brasil.