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A camisa toda suja de batom

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Já há algum tempo, eu tenho visto aqui e ali, todos os dias, pessoas reclamando ou comentando que estão hipersensíveis a tudo ou estão meio que sem lugar no mundo. Um tiktok de um doguinho caramelo pedindo carinho comove a ponto de olhos encherem d´água. Uma surpresa carinhosa de uma filha a um pai, vista quando zapeamos pelos reels do Instagram, faz subir no peito uma vontade de chorar que vem das entranhas. Qualquer paisagem postada ao som de Suite for Violoncelo No 1 em G Maior inunda a gente com uma tristeza sem razão aparente. Às vezes olhamos uma coisa que antes era dona de nossa atenção sempre e a vontade é deixar pra lá. Sabemos mais ou menos o que sentimos – algo entre uma melancolia, uma mofineza e uma languidez –, mas não conseguimos identificar de onde vem essa coisa estranha. Quase certeza de que você também que me lê já se sentiu assim nesses tempos recentes.

Nas minhas hipóteses, essa angústia sem remetente direcionada à posta-restante de nossa alma é um subproduto da pandemia. Estamos muito cansados do peso de nossa cabeça, desses dois anos passados, presentes, vividos entre o sonho de existir plenamente – ou de sua ilusão, pelo menos – como era antes do vírus, e o som dessa interminável chuva de lutos e reacomodações que hoje se impõem. Estamos muito cansados. Fatigados a ponto de não poder falar palavra sobre essas coisas sem jeito que trazemos no peito e que, não, definitivamente não achamos tão bom.

Daí vem uma procrastinação como a dizer para não nos preocuparmos com os compromissos nesse mundo agora marcado pela incerteza. O que esperar ao dobrar a próxima esquina? Esbarrar com uma guerra estúpida? Ter de lidar com um presidente imbecil e asqueroso? Ficar no prego de gasolina a quase oito reais o litro? Perder um amigo querido para o suicídio? Quando bate essa desalegria, a reação do eu parece que é rasgar no grito as amarras e se jogar, gritando Esparta!, no hedonismo, nos prazeres, grandes e pequenos, permitidos ou proibidos. É ir para o carnaval purgar a prisão involuntária imposta pelo Corona. É tacar um foda-se no autocuidado, levados por uma pulsão de morte que blefa com a Magra da foice, pagando para ver. Vem, safada! Põe pra cima! É deixar a pulsão dos desejos do Id assumir a porra das rédeas, mandando o superego às favas. Vai controlar a puta que te pariu, bedel dos infernos! É botar o bloco na rua, seja lá o que isso metaforize na sua vida sem carnaval, suspenso em sua folia por essa merda toda que esse vírus trouxe.

O desejo recalcado passa a ser visto com bons olhos. Por que não desejar? Por que não esticar a corda se eu nem sei se haverá corda ao acordar no dia seguinte? À gente só resta ousar quando a única alternativa sobre o gelo fino é a velocidade.

Fato é queremos uma balada nova, falando de brotos, de coisas assim. Falando de money, de banho de lua, de ti e de mim. Ficamos tão mais sentimentais. Tão à flor da pele que o beijo da Marieta Severo com o Reginaldo Farias na novela nos faz chorar. Tão à flor da pele que nosso desejo se confunde com a vontade de não ser, que a nossa pele traz o fogo do juízo final. Nesses dias de desalegria, singramos um rio desconhecido num barco sem porto, sem rumo, sem vela. Cavalgamos um cavalo sem sela; bicho solto, cães sem dono, crianças e bandidos viramos. Vamos de extremo a extremo: às vezes nos preservamos, por outra suicidamos.

Não engula o choro da pandemia. Sim, essa agonia, esses gatilhos invisíveis fazendo sintoma, é tudo causa do choro da pandemia. Choro pelos que perdemos e cujas ausências nos dilaceram as lembranças quando os recordamos. Porque “recordar” vem de re-cardio, passar de novo pelo coração. Aí dói demais. Arde qual álcool em ferida exposta. Como psicólogo, sou obrigado a dizer para você buscar um equilíbrio restaurador e isso passa por se permitir o inédito para dar conta desse lamaçal em que nos metemos. Sem culpas. Habeas corpus. Habeas anima. Está pesado demais para ficarmos catando culpas. Vaze pelos seus poros.

No fundo, penso que todos nós estamos precisando mesmo é daquela sessão de cinema das cinco, para beijar a menina ou o menino, o que faça seu gosto, e levar a saudade na camisa toda suja de batom ou de outras substâncias que do desejo decorrem.

Indo para o supermercado, ouvindo Belchior de manhã cedo no rádio do carro, chorei feito um condenado. Condenado à incompletude, à finitude, ao descontrole sobre o mundo. A moça do caixa, eu acho, nem notou que chorei muito. Se notou, ela foi discreta. Só perguntou se a tristeza era no crédito ou no débito, se meu sentimento torto era por aproximação ou penetrativo.

Ouçam Belchior bem alto aí. E na semana que começa, leitor e leitora queridos, sujem a camisa de batom, if you know what I mean.

Mundo lânguido

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Entre os extremos do estado mental da depressão – total falta de vontade de viver – e o florescimento – alegria plena de uma vida virtualmente feliz -, há a languidez.

Na languidez, a pessoa não está com o tanque cheio de energia, como no florescimento, nem está com o tanque vazio da depressão. É um entremeio. É um estado de indiferença com sua própria indiferença em relação às coisas. O dicionário a define como a diminuição do ânimo, do vigor, uma frouxidão, uma moleza, uma fraqueza. É um tanto faz contínuo. É aquele sentimento depreendido da resposta de nossos filhos quando perguntamos “Como foi a aula online hoje, filho?” Resposta: “É…”

A vontade é de procrastinar, potencializada pela falta de perspectivas concretas. No começo da pandemia, ano passado, as palavras-chaves eram perda e medo. Mas fomos relaxando, desenvolvendo estratégias para lidar com o alongamento do tempo da pandemia. Já não temos mais aquela ansiedade da luta ou fuga, do ano passado. A sensação hoje é a de que não adianta nem lutar nem fugir, mas só deixar rolar.

O amazonense tem um termo para esse calundu, esse desânimo: mofineza. É isso: não estamos felizes – como estar?! -, mas não estamos deprimidos também. Estamos mofinos. Vivemos numa condição de limbo psíquico: lânguidos.

Precisamos cuidar dessa languidez. Não, ela não é uma doença. Mas está na antessala. Passará a ser no momento em que nos tornar disfuncionais para a vida. E como cuidar disso? Há saída?

Sim. Uma saída é exercitar as atividades de fluxo. E o que são atividades de fluxo? São atividades de imersão de atenção e foco: maratonar séries na Netflix pode resolver. Ler um livro, imerso na história, também. Ouvir música por puro prazer deitado no chão da sala é uma outra opção. Focar em um projeto há tempos esquecido talvez seja uma alternativa. Para os jovens, jogar videogame é a típica atividade de fluxo. Assistir a vídeos no YouTube por horas é outra. A lista é quase infinita e depende daquilo que faz com você esqueça do tempo, do lugar e de si para, paradoxalmente, passar a cuidar de si por meio desse exílio profilático nas atividades que absorvem. Ser multitarefa nesses tempos não é lá muito recomendado. Daí o cuidado para home office não virar office home.

Ninguém quer sofrer de transtorno de mofineza. Estamos todos buscando ampliar o repertório para lidar com todas as rupturas que a pandemia nos trouxe. Cada um sofrendo e desenvolvendo suas estratégias, com ou sem ajuda de uma escuta qualificada – mas sabemos que uma boa terapia faz uma grande diferença. Nós, psicólogos, estamos aqui. Fato é que é necessário sair dessa condição de letargia e retomar os sentidos da vida.

Viktor Frankl, médico judeu que viveu os horrores de Auschwitz, sobreviveu àquilo porque deu sentido ao que vivia ali. Frankl disse a si mesmo que sua estada em Auschwitz tinha de servir para algo, ser contada ao mundo porque as pessoas precisavam saber o que é estar num campo de concentração nazista. Esse sentido dado à sua dor o salvou. Ele conta essa história em “Em Busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração”. Retomando essa ideia, o mesmo Frankl diz, em “O sofrimento de uma vida sem sentido”, outro livro que recomendo vivamente para esses tempos, que a angústia é um sofrimento que não foi significado ainda. Quando damos sentidos às nossas dores, nós as esvaziamos de angústia e começamos a lidar com ela para viver melhor.

Penso que identificar a angústia sem nome e difusa que vivemos na pandemia começará a pesar menos se a nomearmos. Precisamos dar sentido a ela. Essa angústia vem da languidez, desse estado de desmotivação, dessa falta de vontade e de energia. É preciso recuperar o sentido do amor, da convivência, das relações e do prazer em relação aos outros e, mais importante, em relação a nós mesmos.Viver é preciso. Sair da mofineza é fundamental.

Sigamos, pois.