política
Sobre linguagem e Todes

A primeira-dama Janja, o ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e cerimonialistas usaram a palavra “todes” em cerimônias ao longo da primeira semana do governo Lula.
“Todes” não faz parte da norma-padrão da língua portuguesa. No entanto, vem sendo utilizada como uma palavra para se dirigir a pessoas não-binárias — que não se identificam exclusivamente com o gênero masculino ou com o gênero feminino.
A primeira coisa que devemos entender para compreender a questão é o conceito de língua que se sustenta para abordar a questão. Pode-se entender a língua como sinônimo de norma-padrão, a norma de investimento, a linguagem “oficial” que está nos livros, jornais, concursos, revistas, que segue a gramática e suas regras cristalizadas nos compêndios. Se entendemos língua assim, “todes” não cabe. Fim de papo.
Pode-se entender língua, no entanto, como algo histórico e dinâmico, com a oralidade sendo o reflexo mais preciso do seu tempo — a língua muda primeiro na oralidade para muito depois a mudança chegar ao uso na língua padrão. Entender língua assim abre para outras questões.
Uma dessas questões é a de que a língua serve para comunicar, mas que também serve para não comunicar; serve para incluir e para excluir. A língua é, portanto, política em sua natureza. Em sendo política, ela é arena de disputas ideológicas. Logo, o uso de “todes” e de outras palavras e locuções ligadas à chamada “linguagem neutra” — que de neutra não tem nada do ponto de vista ideológico —, é uma marcação, uma tomada de posição política em relação às questões de gênero. Por isso incomoda.
As questões de língua nunca são só questões de língua. São sempre questões sociais. O preconceito linguístico não é contra a língua, mas contra quem usa aquela língua. Vale para palavras, vale para sotaques, vale para grupos em geral. A sociolinguística estuda isso há anos.
“Sim, professor, mas é certo ou errado usar ‘todes’, afinal?”
A pergunta linguística não está na dicotomia certo/errado, mas no binômio adequação/inadequação. Vamos pensar língua como roupa. Todo lugar tem, convencionalmente, um dress code adequado. Uma cerimônia de casamento requer, historicamente cristalizados, certos tipos de roupas. Posso ir de tênis e jeans? Posso. Mas isso vai significar algo, vai gerar um efeito de sentido, desnaturalizando o naturalizado. Se alguém vai a um casamento vestido de tênis, jeans e uma camiseta estampada, o significado pode ser: “estou aqui, mas não concordo com alguma coisa disso e minha forma de me posicionar é desafiando o estabelecido.”
O mesmo raciocínio vale para o uso da língua. Se eu acho que esses pronomes ou termos não me representam e agridem a minha subjetividade, vou protestar não usando mais ou substituindo por outros que os desafiem e que me posicionem politicamente de forma bem clara.
“Mas isso em qualquer lugar e circunstância, professor?” Depende do quanto você está disposto a enfrentar o já estabelecido. Sempre há preços a pagar em lutas contra o establishment, inclusive o establishment linguístico.
Usar “todes” em cerimônias de um governo que se propõe inclusivo em relação aos grupos minorizados é perfeitamente adequado como sinalização linguística de um posicionamento político; bolsonaro — em letra minúscula, como marcação política — não usaria em seu governo excludente.
Usar “todes” na redação de um concurso que define a norma-padrão como regra — a não ser que o tema seja esse — não é adequado para quem quer passar no concurso. “Ah, mas eu quero. Foda-se!”. Ok. Legítimo. Mas vai pagar o preço da reprovação pelo posicionamento político. E ok.
O uso da língua nos posiciona politicamente. Uma luta por espaço político requer tomada de posição e embates, com preços a pagar por aquilo em que acreditamos. O grau de adequação depende de quão desafiadora é a questão: quanto mais desafiadora for, mais incômodo vai causar.
Mas é assim que se mudam as coisas. A língua é, sim, dinâmica, histórica, social. A norma-padrão tem seu lugar e é necessária. Não vamos demonizá-la também. Porém não é o único uso da língua. A oralidade a precede no uso. A escola precisa discutir o que estamos discutindo aqui.
A língua não é estática e acolhe as mudanças sociais, embora sempre o faça com resistência. É o lugar de embates ideológicos por excelência. Aborto/Interrupção de gravidez? Presidente/Presidenta? Golpe/Revolução? Milhares de exemplos de briga pelos sentidos. É só cavucar.
Se o inadequado na língua é o que lhe subjetiva, desafie pela língua o inadequado na prática social até ele virar socialmente adequado e até refletir na língua-padrão. O caminho é longo, a luta é árdua e vão resistir. Requer às vezes ir vestido de Batman para um casamento.
Este governo, ainda bem, deixa entrar o jeans e o cocar numa cerimônia social de posse de ministros. Este governo deixa entrar não só quem detém o poder econômico, mas todos, todas e todes também. Embora meu corretor ortográfico ainda sublinhe aqui ‘todes’ como erro.
“Mas o certo e o errado?” O certo é incluir quem está excluído. Socialmente e na linguagem. E na guerra linguística, como em qualquer guerra, é preciso pensar nas estratégias adequadas para vencer as batalhas.
Há o tempo e o lugar. E há o tempo e lugar. O vale-tudo todo tempo não é inteligente. É isso, por enquanto.
Fiquem bem. Todos, todas e todes.
Palavra de bêbado

Em “Cálice”, de Gilberto Gil e Chico Buarque, escrita na pauleira da censura do início dos anos 70, é conhecida a homofonia que faz deslizar a letra da música do religioso para o político. “Afasta de mim este cálice/cale-se.”
Há, no entanto, uma passagem pela qual sempre tive uma predileção especial: “Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa”.
Leio sobre Psicanálise desde 1994. Penso a Psicanálise como um dispositivo de interpretação da cultura. Não à toa meu baratinho é Análise de Discurso. Agora ando estudando o trabalho dos sonhos.
Freud diz que os sonhos montam suas histórias, aparentemente sem sentido, com três coisas: restos da véspera, sensações fisiológicas sentidas durante o sono e desejos recalcados na vigília. É por isso que, por exemplo, ter encontrado um coleguinha de infância que não se via há anos, dormir descoberto no frio e ter sofrido bullying dolorido na tenra idade podem aparecer no sonho como, digamos, uma cena no topo do gélido Himalaia. De repente, subindo a montanha, você escorrega e cai, mas se segura em algo. O amigo recém-visto, que no sonho aparece de repente como um companheiro de escalada, surge gargalhando e pisa com força em sua mão para você despencar. Você, no fim, se salva, atualizando o desejo de se ver livre das cicatrizes psíquicas do bullying. Mesmo não tendo sido o tal colega um dos que fizeram bullying com você lá atrás, em sua figura emprestada da experiência do dia estão condensados todos os bullies atormentadores. Esqueminhas do sonho para contar as histórias. Freud, seu bruto.
A arte faz isso também. Gil conta que “Cálice” foi composta no apartamento de cobertura de Chico na Lagoa Rodrigo de Freitas. Ambos bebendo Fernet, uma bebida amarga. Tanto a bebida amarga quanto a lagoa da realidade entraram na música como deslizamentos metafóricos. Restos da realidade trazidos para significar no tecido da letra. A letra, by the way, é cheia de deslizamentos e intertextos. Uma riqueza, obra-prima, de chorar. Juntando os dois assuntos, a passagem da música que destaquei acima como predileta é muito psicanalítica. O silenciamento é imposto ao Ego pela censura do Superego, recalcando o desejo do Id.
Esse desejo, claro, fica atento e vivo na pulsão inquieta, batendo tambor no inconsciente. A pulsão vai uma hora ou outra emergir da lagoa de alguma forma, pois vocação de pulsão é ser. Vira neurose ou dor no corpo ou sublimação ou gozo. Foi isso tudo que fez o monstro da lagoa de Gil e Chico emergir nas Diretas Já, depois de anos daquele terror da ditadura militar. Fazendo um intertexto com o Gonzaguinha, dá para dizer que o copo estava cheio e já não dava mais pra engolir. Foi tudo isso que fez o monstro da lagoa, sem um rosto definido, emergir em junho de 13. Insatisfações de toda ordem. Monstro sem coleira, sem dono, comendo tudo e, principalmente, nossa capacidade de viver no contraditório. Foi tudo isso que fez o monstro da lagoa emergir na eleição de Bolsonaro. As pulsões machistas, preconceitos de todas as formas e tipos, mal-resolvidos de toda ordem, vontade de apagamento do outro…
Tudo o que vinha sendo engolido porque os avanços nas pautas sociais não permitiam mais esses desejos perversos ganhar pastos e sair serelepes por aí. A eleição de Bolsonaro foi a abertura da caixa de Pandora, foi a porteira da boiada do Salles. Fez emergir esse terrível monstro da lagoa que hoje engole nosso sentido de país, que, puf!, vaporizou. A eleição do xexelento só foi possível, esse monstro nojento só emergiu, porque essa turma ficou calada por muito tempo porque a gente tinha tomado esses espaços deles. Mas deu uma grande merda geral. Triste conjunção de cenários que tornou o Brasil um país marginal no mundo, um Tuvalu na geopolítica mundial. Enfim, o que quero dizer é que mesmo calada a boca resta a cuca dos bêbados do centro da cidade.
Muitos de nós estamos embriagados por goles diários de uma dura realidade. Realidade feita de um negacionismo que denegou um inimigo real que tirou vidas porque só sabe existir para combater seus inimigos imaginários, de um (des)governo que faz tudo ao contrário. De uma polícia que castiga corpos pretos todo dia com a naturalidade de quem toma um café. De patroas que apertam o botão do andar da morte social e fazem espatifar junto com os corpos de miguéis os cristais de esperança que teimamos carregar na malinha de mão do nosso coração.
Como é difícil acordar calado, se na calada da noite eu me dano! Danei-me tanto essa noite que decidi escrever porque, Pai, caramba, afasta de mim esse cale-se, essa bebida amarga. Ando cansado de tragar a dor. Mas, sabe, #soubêbadodocentrodacidade. Resta a cuca. Fecho com Ivan Lins na pandemia: no literal, eu lavo as mãos com álcool gel. Mas na metáfora, eu não lavo as mãos e não me calo. Quem é isento nesses tempos é cúmplice. Eu não lavo as mãos e é por isso que eu me sinto cada vez mais limpo.
Atento na arquibancada pra, a qualquer momento, ver emergir um monstro na lagoa. Um monstro que engula esses canalhas todos. Na forma da lei. A eleição está aí.
Administração da pessoalidade
Uma amiga pedagoga me disse, triste: “professor, acabaram com o Prosed”. O Processo Seletivo de Escolha de Diretores – Prosed – foi o mecanismo criado pelo ex-prefeito Serafim Corrêa, a partir de nossa proposta quando estávamos na Secretaria de Educação, para eliminar a indicação política como critério de escolha de diretores de escolas. Isso foi em 2005. Sempre acreditamos que é preciso despoliticar a educação para politizá-la, o que passa por instituir a impessoalidade na administração.
Em 2007, o Governo Federal editou o Decreto 6.094 , criando o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação. São 28 metas a serem cumpridas por Estados e Municípios para que os índices da educação brasileira melhorem. A meta 18 diz: “fixar regras claras, considerados mérito e desempenho, para nomeação e exoneração de diretor de escola”. Antecipamo-nos em dois anos. A convite da Secretaria de Educação Básica do MEC, a proposta de Manaus foi por mim apresentada em reuniões de secretários de educação em Brasília como uma das experiências exitosas em gestão. Algumas cidades implementaram processos parecidos, como Recife, cuja equipe nos visitou para conhecer melhor o modelo.
Pois bem. A Prefeitura de Manaus acabou com o Prosed. Na contramão da história, revogou a escolha de diretores por mérito, com avaliação participativa da comunidade, e reintroduziu o apadrinhamento político para quem vai dirigir a educação. A secretária de educação justificou a mudança com o argumento de que ela “precisa confiar nos diretores”. Isso, ao bom entendedor, significa que a competência e o mérito acadêmico que levaram à posse dos atuais diretores são critérios menos confiáveis do que a indicação política. Diz mais: “Não se seguia a lista dos aprovados”. Posso assegurar, até o momento que lá estive, que esse critério era intocável por ordem expressa do ex-prefeito e do ex-secretário. Que o digam vereadores, que por várias vezes contrariei. A questão de fundo é que de novo se subjetiva o processo de escolha que antes era objetivo, por mais que a secretária faça jogos de retórica.
Para o sistema que volta, o prestígio do diretor indicado é a medida de sua “competência” e a fidelidade partidária o parâmetro de seu “compromisso”. Essa decisão retrógrada, que não surpreende pelo modelo político do prefeito, vem no conjunto de medidas como a recentralização de procedimentos que foram acertadamente descentralizados para a Secretaria de Educação para dar rapidez aos processos, como a criação da comissão de licitação e do setor de projetos de construção de escolas, que existiam na Semed e agora desaparecem. O material escolar vai entrar na fila de licitação geral da cidade, atrás das bolas do Fabrício Lima. Os projetos de novas escolas vão também para a fila da Secretaria de Obras, sem prioridade em relação aos boxes das feiras. No caminho inverso do administrador moderno, a Prefeitura está puxando para dentro em vez de delegar para fora.
Fato é que o anacronismo administrativo, político e paradigmático que se instalou na administração municipal está aparecendo. A sociedade organizada tem de estar atenta para as medidas desta administração que é, sem dúvida, uma administração da pessoalidade.