Igarapé de vida

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[Escrevi este texto para ser lido na missa da Ana Luiza. Estava em Novo Airão e a cidade ficou sem internet durante dois dias, o que impossibilitou o envio e a leitura na missa. Publico agora, com o mesmo carinho].

Escrever sobre a Ana Luiza. Foi que me pediram. Pensei muito sobre o que falar, já que muito foi dito e escrito e mesmo esse muito tem sido insuficiente para dar conta de tanta coisa a ser dita, falada, silenciada.

Escrevo enquanto cruzo o Rio Negro, num compromisso que me impede de estar nesse ato de comunhão. É ele, o rio-mar de águas escuras, que me olha e me sopra no ouvido o que dizer. Isso: a vida é um rio.

A vida nasce. Na nascente do rio, a pequenez. O mais caudaloso dos rios nasce pequeno. Brota das entranhas da terra em busca da luz e de seu caminho, que começa, num filete, numa coisica de nada, diminuta, terna, serena. Dali fará seu percurso por entre as drummondianas pedras no meio do caminho. Ali correrá ziguezagueando e levando vida por onde passar. Na metáfora da vida como rio, o rio dá a vida. A vida, quando nasce, faz nascer uma nova vida para aqueles que aguardam, com cada detalhe, que o pingo da água venha à luz. O choro do bebê é a água que jorra do chão.

Se cada uma de nossas vidas é um rio, cada uma tem um curso, cada uma tem suas margens. E os rios, que nascem parecido, vão então ganhando sua identidade. Há rios alegres, há rios tristes. Há rios que alegram. Há rios que representam para quem às suas margens habita a própria existência. Todos os rios são diferentes. Porque todas as vidas são diferentes.

Há rios que são longos e alimentam o mundo. Há rios que são curtos e somem sem serem notados. Há rios que são longos e que não fariam falta. Há rios que são curtos e que são cheios de vida.

Ana Luiza era um rio desse último tipo. Um rio que nasceu. Um rio que correu. Um rio que sorriu. E embora a extensão de suas águas visíveis tenha sido curta, a área que banhou e continua banhando foi e é infinitamente maior do que a desse Rio Negro que ora me espreita. O rio de Ana Luiza era um rio de vida. Com sua água, que é a dona da vida, nos trouxe as preces mais coloridas.

Na pequena extensão dos seus braços, Ana Luiza foi um rio de mudanças. Seu grande legado é este: redimensionar a vida de várias pessoas, conhecidos ou estranhos, em Manaus, em São Paulo, em qualquer lugar. Suas breves águas se espalharam por todos os cantos. Orações foram pronunciadas com fé por quem a fé havia deixado na outra margem do rio. Muitas pessoas puderam finalmente entender com propriedade o que significa a palavra solidariedade. Entender sentindo, que é a melhor forma de entender. Pais amaram mais seus filhos. Os problemas do mundo ganharam outros tamanhos e puderam, assim, ser um fardo menor para quem os carrega. Lições do pequeno rio. Laços se fizeram. Nós se ataram em mãos que se uniram sem se tocar para pedir que o rio continuasse seu caminho. Gritamos em uníssono: Força!

Mas já dizia o velho índio: não apresse o rio. Ele sabe seu curso e corre sozinho. E o riozinho nos ensinou mais essa: os rios brotam na terra e seu caminho é definido desde sempre pelo Grande Arquiteto. Interferimos quando Ele permite. Mas quando Ele já traçou uma rota para o rio, pouco podemos fazer. Porque é ele, o rio, quem faz por nós.

Ana Luiza não morreu. Rios não morrem, deságuam. Ela desaguou em cada um de nós de forma muito particular. Ela irrigou em cada um de nós uma parte que nos estava secando, sedenta de alguma coisa que o pequeno rio proveu.

A impossibilidade de pegar na água do rio não reduz sua molhadez. Porque rios especiais ficam. Como pessoas especiais ficam. Pessoas que tem um propósito específico que sempre fugirá à nossa capacidade de compreensão, que nunca será alcançado pelos infinitos porquês da razão. Rios especiais ficam. Pessoas especiais ficam. Derramadas em cada um de nós, em cada uma dessa vidas aqui presentes em corpo ou em desejo.

Que a família da Ana Luíza, que olha o buraco infinito de sua ausência física, seja para sempre preenchida pelas águas que o pequeno rio espalhou pelo mundo, derramou sobre nós, aspergiu sobre nossas existências. O riozinho fez nascer mais vida em cada um de nós. E desaguou no grande rio da Vida, ao lado do jardineiro da existência.

O Rio Negro sorriu e disse que agora, sim, eu entendi. Não é a extensão física que conta para a importância de um rio. É sua extensão de amor. Ana Luiza é um igarapé maior que um mar. Um igarapé de vida.

 

5 comentários em “Igarapé de vida

    Giz Walek disse:
    26/07/2011 às 09:48

    Texto lindo!

    Ale disse:
    26/07/2011 às 12:35

    Que mensagem linda….Hoje eu amo muito mais minha filha, meu marido, minha família….

    Sandra Toda disse:
    26/07/2011 às 14:12

    Rapaz que texto lindo. Parabéns, mais uma vez vocë se superou, obrigada por existir. bjsss.

    érika kokay disse:
    26/07/2011 às 15:48

    eu pensei exatamente isso quando fui no velório dela. ela se foi, pra ficar um pouquinho em cada um de nós.

    Elida disse:
    26/07/2011 às 17:54

    Elida Coelho disse: Parabens, hoje com certeza nos tornamos mais fortes e solidarios uns com os outros, este sera para sempre o legado da Nossa Eterna Ana Luiza.

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