O nome da Rosa

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Ele simplesmente falou meu nome. Ele disse “Fernanda” e eu de novo pude sentir a sensação me invadindo. Minhas pernas sob o vestido florido tremeram e minha cabeça começou a girar. Foi assim que eu me apaixonei. Ele ali na minha frente. O objeto do meu amor. Mais velho. Olhos castanhos. Sorriso com covinha. Cabelos com fios grisalhos despontando.

Aquele homem parecia feito para mim. Inteligente sem ser pedante. Carinhoso sem ser piegas. Cheiroso como o perfume das rosas que minha mãe cultiva no jardim de nossa casa. O tom da sua voz era perfeito. Nem alto nem baixo. Falava sem pressa como se o mundo todo parasse para ouvir o que ele tinha a dizer. Às vezes seu jeito de sorrir em silêncio lembrava o meu pai.

Eu o conheci no shopping. Estava escolhendo um perfume para o meu namorado. Ele se aproximou e sugeriu o que eu estava segurando, que, por acaso, era o dele.

– É irresistível. Tenha cuidado.

– Obrigada. Sei me defender.

– Qual seu nome?

– Fernanda.

– Ousada.

– Como assim?

– Seu nome. É teutônico. Significa ousada.

Ele me convidou para um café. Normalmente desconversaria em uma situação daquelas. Mas fui pega pelo visgo no olhar daquele homem. Passamos a tarde conversando na parte externa do shopping. As árvores faziam sombra, mas vez por outra um raio de luz iluminava o seu rosto, reforçando o seu brilho natural. Ele era divertido. Me fazia rir. Não era lindo, mas era bonito. Ele me explicou o que era teutônico. Falou de poesia, de Adélia Prado, de música, de um Hyldon, mas também das mais atuais – sua preferida era Save your tears; Falou de filosofia, de perfumes e de vinhos. Ele me contou de Fortaleza e de como gostava de sentir o vento soprando no rosto. A impressão que dava era a de que tínhamos de botar uma conversa em dia. Se eu acreditasse em espiritualismo, diria que era um reencontro.

Passamos a nos ver quase diariamente. Ninguém sabia. Nós não combinamos os termos de nossa situação. Eu namorava Cristiano há algum tempo. Uma namoro estável de uns anos. Mas desse homem que me envolveu com seu jeito único em algumas horas eu nada sabia, a não ser que vez por outra viajava para Fortaleza a trabalho. E que gostava do tal Hyldon. Passavámos tardes inteiras juntos. Tive o melhor sexo da minha vida. Ninguém me fez gozar como ele. Seu prazer era me ver sentindo prazer. Tudo muito diferente dos sexos egoístas dos garotos que tive até então. Eu ansiava pelo próximo encontro porque sabia que ele faria coisas diferentes. Ele era meu vício.

Um dia, eu decidi que aquilo tinha de parar. Depois de uma tarde juntos eu disse:

– Acabou. Essa foi a última vez.

– Por quê? – Ele falou sem me olhar.

– Porque não está certo. Eu tenho namorado. Eu não sei nada de você. Nem seu nome eu sei. Essa situação é absurda.

– Está bem.

Ele me abraçou e não rebateu. Eu me frustrei. Fiquei puta. No fundo, queria que ele tivesse lutado por mim. Mas ele foi compreensivo. Aquilo me afundava mais dentro dele e fazia com que eu quisesse que ele se afundasse cada vez mais dentro de mim. Queria que ele dissesse que aquilo era moralismo, que a gente era perfeito, que não tinha razão para parar. Mas não. Ele só sorriu, mostrou a covinha e me desmontou com seu beijo leve.

– Você não vai contestar?

Ele passou a mão no meu cabelo, tirando uma mecha dos meus olhos e arrumando a bagunça que ele mesmo tinha feito. Sorriu e falou:

– Eu gosto da gente, Fernanda.

Aquele homem sabia que dizer meu nome tinha um efeito entorpecente em mim. Foi a última vez que o vi antes do reencontro.

Nesse meio tempo, fui fiel à minha decisão e ao Cristiano. Mas confesso que morria de saudade dele. Matava um pouco dessa saudade com o perfume do Cris. Eu não presto! Era o corpo dele que eu imaginava sobre o meu quando estava com meu namorado. Cada música que eu ouvia parecia ter sido escrita para mim. Procurava filmes de amor proibido nos streamings da vida. Quando os filmes mostravam situações parecidas, era meu rosto que via na cara da atriz e era o rosto dele que eu via na cara do ator.

Pensei em stalkeá-lo no Insta, mas o absurdo da situação era que eu nem sabia o seu nome. Nunca perguntei. Ele nunca me disse. Acho que isso aumentava o mistério e me dava mais tesão, sei lá. Eu passeava horas nas redes para ver se de repente esbarrava com ele de novo, como na loja de perfumes. Virtualmente já me tiraria as dores. Em vão.

Perdi o interesse pelo Cristiano. Terminamos. Até hoje ele desconfia que tinha outra pessoa. Acho que tinha certeza. Quando a gente conhece o outro, a gente sabe das coisas. Perdi o interesse pelo trabalho de jornalista, minha grande paixão. Perdi o apetite. Sempre que podia, ficava sozinha, ouvindo The Weeknd. Chorava no banho, as lágrimas salgadas se disfarçando em água do banho. Não sei se chorava porque maldizia o café aceito ou a saudade que me queimava. As duas coisas, talvez. Tinha insônia. Só me vinha a vontade de estar com aquele homem. Mas ele me fazia mal. Ele era meu vinho. Ele era meu vício. Estava para explodir. Resolvi contar para Alícia.

– Doidice, Fernanda… – Disse ela, me reprovando enquanto mexia no celular sentada na cama de perna cruzada, feito um buda.

– Não quero esporro. Quero ajuda.

Ela largou o celular.

– Então o que te impede de ir atrás desse cara? Mandar mensagem para ele? Você tá sem namorado. Está aí morta de apaixonada. Assume logo.

– Minha mãe me mata. Ele tem idade para ser meu pai.

– Vai que tua mãe se apaixona por ele…

– Porra, Alícia…

– Desculpa. Foi mal. Se eu fosse tu eu mandava mensagem e dizia “Eu sei o que eu quero. Eu vou te ver”. Eu sou decidida, mana.

– Mas é uma coisa que me faz bem e me faz mal ao mesmo tempo, sabe…

– “Desconsidera o que passou. Põe teu olhar no que será.” É do Padre Fábio de Melo.

– Vontade monstra de chorar…

– Chorar é uma ótima alternativa. Tá aflita? Chora. Tá com saudade? Chora. Com raiva? Chora! Não vai fazer ninguém voltar, não vai mudar situações, mas que vai aliviar, vai…

Alícia era amigona. Sabia o que dizer, do jeito dela.

Com o tempo as coisas quiseram se ajeitar. Três semanas, desde daquela tarde em que ele não brigou por mim. Comecei a sair de novo, fiquei com uns meninos aí. Mas tudo pirralho. Ah, não dá. Depois dele…

Eu lembro que em uma de nossas tardes eu fiquei olhando ele falar, hipnotizada.

– Sabe, Fernanda. Eu já viajei muito, já li muito, já conheci muitas pessoas. Quanto mais longe eu vou, mais eu percebo a necessidade de ficar dentro de mim. A gente não deve se procurar fora de si, mas aqui dentro. O lugar de descanso da mente é o coração. A mente passa o dia inteiro escutando barulhos, problemas. Mas o que ela quer mesmo é tranquilidade. Ficar com você foi uma das melhores coisas que já me aconteceu. Você me dá tranquilidade. É algo só meu e seu. Basta. Você é uma mulher bonita, doce, deliciosa… – Eu adorava quando ele misturava o bonito com o sujo.

– … você me dá prazer como eu nunca tive. Eu sinto que é verdadeiro. Eu gosto da gente, já disse lhe disse isso. Tenho medo de estragar tudo mais cedo ou mais tarde. Porque as relações gastam.

– A gente tem uma relação? – Provoquei.

– E não tem? – ele sorriu com o canto da boca, mostrando a covinha, daquele jeito de sempre.

Aquilo me deu um frio na barriga, barriga que dez minutos depois estaria toda beijada de novo, com uma língua enrolada no piercing.

– O grande problema de gostar de alguém de verdade é que quanto mais você gosta mais você se vulnerabiliza para essa pessoa. Ela começa a saber tudo de você, seus pontos fortes e fracos. Adquire uma precisão cirúrgica para chegar em você, positiva ou negativamente. É o paradoxo do amor. Por isso evito compromissos mais sérios. Já que a sinceridade sempre marcou a gente, preciso lhe dizer que nosso limite é aqui.

– Nunca te cobrei nada… – E ali ele matou minha fala ensaiada por semanas.

– Eu sei. Mas eu preciso dizer por uma questão de honestidade. Vem cá.

Foi uma tarde maravilhosa.

Aquela era mesmo uma situação estranha. Eu já tinha sido cantada por homens comprometidos, homens casados, marido de amiga até. Mas nunca me envolvi com ninguém enrolado. Até então, só havia transado de forma casual uma vez, para me vingar de um namorado. Sugestão da Alícia, que deu corda. Mas o objeto do meu amor não era enrolado. Quer dizer… eu não sabia nem bem o que ele era. Só sabia que ele o objeto do meu amor. Seria casado? Por que tanto mistério? Por que não falar seu nome? O que me impedia de ir buscar aquele amor para mim? Havia em mim um certo preconceito antecipando outras pessoas quanto à diferença de idade. Quantos anos ele teria? Bem mais que o dobro dos meus 22, certamente. Aquele homem era meu tormento e meu bálsamo. São 02:55 da manhã e eu aqui, de novo, pensando nele.

Leve, me olhei no espelho e gostei do que vi. Prendi o cabelo com um rabo de cavalo e deixei aparecer a tatuagem de borboleta na nuca. Não coloquei batom porque gosto da cor natural dos meus lábios, cor de açaí. Escolhi um vestido de alça, colorido, para variar o preto básico pelo qual sou conhecida. Uma sandália rasteirinha. Minha pauta era uma escola municipal e seu projeto de artesanato com garrafas pet. Gosto de pauta com crianças. Elas são verdadeiras, diferentes dos adultos que semprem mentem e dissimulam. Por que será que falei isso?

No meio do caminho, o telefone tocou. Ligação. Ninguém liga mais. Olho na tela e vejo: ELE. Assim eu o identifiquei no celular. Fiquei sem chão. Não esperava. Tremi. As mãos suaram. O motorista do jornal notou e perguntou:

– Tudo bem aí, Fernanda?

– Tudo, Cabeça. Normal.

– Tem certeza?

– Tenho. Mas me faz um favor. Me deixa no shopping.

– Como assim? E a pauta? O Gorr vai crisar.

– Depois eu falo com o Gorr – Era assim que chamávamos o Márcio, o editor, por razões óbvias.

Esse era o código. Ele ligava, deixava tocar duas vezes e não falava nada. Em meia hora eu estava no shopping, na saída do estacionamento da praça de alimentação. Em uma hora eu estava no paraíso.

Ali estava eu, de pé, ansiosa. Ele simplesmente falou meu nome. Ele disse “Fernanda” e eu de novo pude sentir a sensação me invadindo. Minhas pernas sob o vestido florido tremeram e minha cabeça começou a girar. Ele ali na minha frente. O objeto do meu amor. Mais velho. Olhos castanhos. Cabelos com fios grisalhos despontando.

Que tarde alucinante. Mais do que sexo, fizemos amor. As flores do meu vestidos despetaladas no chão. Rimos. Ele derramou vinho em mim e me bebeu. Ele jogou chantilly em mim e me comeu. Uma, duas, três, perdi as contas de quantas vezes senti meu corpo formigar. Depois de um descanso, ele me disse:

– Quer saber meu nome?

– Não. Dá próxima vez. – Sorri, enigmática, pra me fazer de difícil, como tinha aprendido com ele.

– Tá bom, Fernanda….

Enquanto ele estava no banheiro, passei um whatsapp para a Alícia contando tudo. Ela só respondeu com um emoji de felicidade.

Ele me deixou perto de casa, como sempre. Lembro do seu rosto iluminado se despedindo. Ele foi e parou o carro. Voltou, abriu o vidro e disse:

– Eu gosto da gente. – Mostrou a covinha.

À noite o telefone tocou. Estava vendo novela. Olhei no visor e lá estava: ELE. Dessa vez, ele deixou tocar mais de duas vezes. Corri para o quarto e atendi.

– Alô! Fernanda? – Era uma outra voz.

– Sim?

– Aqui quem fala é Azrael Nascimento.

– Sim…

– Desculpa eu ligar assim, mas é que aqui na agenda do celular está escrito “Fernanda, meu amor”. Eu achei que devia.

– Mas o que é?

– É que o dono desse celular sofreu um acidente. Foi atropelado. Fui eu que socorri ele. Sinto muito, moça… mas você precisa ser forte….

Minhas carnes tremeram, mas não de prazer. Um vento, como o de Fortaleza, soprou no meu rosto pela janela da sala. O cheiro de rosas do jardim da mamãe invadiu tudo. Nunca mais vesti vestidos floridos.

Um comentário em “O nome da Rosa

    Viviane disse:
    16/05/2024 às 10:57

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