Detalhes

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Não adianta nem tentar me esquecer/Durante muito tempo em sua vida eu vou viver…/Detalhes tão pequenos de nós dois/são coisas muito grandes pra esquecer/E a toda hora vão estar presents/Você vai ver…/Se um outro cabeludo/aparecer na sua rua e isto lhe trouxer saudades minhas a culpa é sua…/O ronco barulhento do seu carro/A velha calça desbotada ou coisa assim/ Imediatamente você vai lembrar de mim…/Eu sei que um outro deve estar falando ao seu ouvido palavras de amor como eu falei/Mas eu duvido, duvido que ele tenha tanto amor/e até os erros do meu português ruim/E nessa hora você vai lembrar de mim…/A noite envolvida no silêncio do seu quarto/Antes de dormir você procura o meu retrato/mas da moldura não sou eu quem lhe sorri/Mas você vê o meu sorriso mesmo assim/E tudo isso vai fazer você/lembrar de mim…/Se alguém tocar seu corpo como eu não diga nada/Não vá dizer meu nome sem querer à pessoa errada…/Pensando ter amor nesse momento desesperada você tenta até o fim/E até nesse momento você vai lembrar de mim…/Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada do tempo que transforma todo amor em quase nada/Mas “quase” também é mais um detalhe/Um grande amor não vai morrer assim/Por isso, de vez em quando você vai, vai lembrar de mim…/Não adianta nem tentar me esquecer/Durante muito, muito tempo em sua vida eu vou viver/Não, não adianta nem tentar me esquecer…

Um amor nunca acaba. Um verdadeiro amor se entranha na gente. Por mais que ele passe no tempo cronológico e os corpos deixem de se encaixar ligando as almas, um amor dos vera finca morada e por muito tempo insiste em viver ali, dentro de nós.

Passado um tempo, a cada esquina o dia a dia nos traz lembranças de um momento de uma vida a dois que se prometeu para sempre. No entanto, a promessa por alguma razão foi interrompida, abortada. Encerrou, mas não acabou.  Porque continuamos esbarrando em cheiros, cores, lugares e pessoas que são máquinas do tempo nos levando àquela época que hoje parece uma dimensão paralela, um tempo de cuja existência esquecemos quando nos pegamos distraídos com a vida. Pegos no susto da lembrança, exclamamos, surpresos: puxa, eu já amei essa pessoa!

Os detalhes tão pequenos de uma trama de afeto são coisas muito grandes para cair no vale do esquecimento. O tamanho de tudo quando se fala em amor não é físico, mas simbólico. Pode caber no espaço de um pingente ou numa aliança tosca de compromisso feita de tucumã. Há detalhes. Aquela história, aquele pôr-do-sol, aquela viagem. Aquela mania, aquela preferência, aquela implicância. O lugar na cama, a tampa da manteiga sempre aberta, a roupa sempre espalhada. Aquele perfume, aquela música, aquele boteco, aquele jeito de sentir prazer. Aquele defeito tão bonito. Como nós não podemos apagar o mundo que circunda aqueles que passaram em nossa vida, os detalhes sempre se farão presentes. Os detalhes moram do mundo, mas pertencem a enredo de dois.

No curso da vida surgirão outros amores. Esses amores novos nos amarão bem menos e pior do que o que se foi. Por isso, amores capengas nos farão lembrar do amor que passou justamente pela intensidade e pela qualidade de tudo o que vivemos e que não temos mais. Alguns outros amores, por outro lado, nos amarão bem mais e melhor do que o suspenso. Esses nos trarão à memória a tristeza da potencialidade não exercida daquele amor que acabou, que não foi tudo aquilo que poderia ter sido. Não tem jeito: a memória é um beco saída. Uma vez dentro, nos encurralamos contra o muro da lembrança. Só tem saudade quem viveu.

Se há uma coisa que constrange o coração é reconhecer em um novo amor a presença de um antigo. Um mesmo hábito, o mesmo jeito de sorrir, o mesmo perfume. A maneira de mexer no cabelo, os movimentos dos abraços ou do quadril… Ou falta de tudo isso. O novo faz assim, mas o antigo fazia assado. Ou cozido. Detalhes. Diz a frase que o diabo mora nos detalhes. Se assim é, o diabo e as lembranças são colegas de quarto. Nos detalhes, a essência do que se foi.

Sabe o que mais dói quando um amor entra em suspensão? É a perda dos detalhes do outro. Perde-se alguém quando se perde seu cotidiano, sua micro-história, suas tristezas e alegrias, que ficam incompartilháveis. Mais: outra pessoa está presente naquele dia a dia que era nosso por direito. Com certeza a vaca ou o babaca está lá com menos afinco do que nós. Outra pessoa está ouvindo frases que eram nossas, fazendo carinhos que deveriam estar vindo de nós e para nós. Humanos pretensiosos, temos a mais absoluta certeza de que o outro que está falando palavras de amor no ouvido que se foi não tem tanto amor como nós tínhamos. Apostamos um dedo polegar em que o impostor não fala do jeito que nós falávamos. É um ultraje esse outro viver a nossa vida, protagonizar os nossos atos, atuar em nossos enredos. Um canastrão qualquer agora encena esse papel que era nosso. Que triste espetáculo!

Detalhes. Arrumando as coisas, uma foto dentro de um livro. No livro, uma dedicatória feita em tempos outros para nós, que já não existimos mais. Como era verdadeira aquela dedicatória… Até a letra era caprichada. Há dúvidas se o cheiro de mofo é do livro ou dos sentidos contidos naquele pedaço de texto. Na foto, um sorriso que preenchia boa parte do nosso dia. Instante de um momento cujas circunstâncias passamos a recordar. Com detalhes. Mas tal qual em “De volta para o futuro”, a companhia da foto está esmaecida porque o futuro não aconteceu por um desvio de rota no passado.

Jogamos fora as fotos, apagamos e-mails e posts, colocamos uma outra foto no porta-retratos. De que adianta tudo isso se o cérebro continua mandando torpedos para o coração? Do que vale trocar as fotos se nas molduras onde há a presença de outra pessoa que lhe sorri, nós continuamos a ver outro sorriso mesmo assim? A lembrança é um espírito obsessor que nos acompanha no carro, no banho, na lua cheia que olhamos, pensando em cenas românticas.

Amores e suores. Delícias de enredos a dois. Se fosse um filme, seria um clássico. Se fosse um livro, seria um best-seller. Se fosse uma música, uma do Roberto. Mas foram-se as histórias. Saíram de cartaz. A vida seguiu e outros amores vieram para beijar nossa boca, lamber nossa carne, tocar nosso corpo. Evitamos falar qualquer coisa no frenesi do balé dançado nos lençóis com o receio apavorante e real de dizer o nome acostumado sem querer à pessoa errada. O breve segundo de consciência sobre quem está encaixado em nós nos tira a concentração. Desesperados, tentamos artifícios para ir até o fim. Recorremos aos olhos fechados para garantir a presença ausente naquele corpo que agora explora o nosso. Por instantes, fingimos acreditar em prazeres novos, nos iludindo em um hedonismo da carne, do sexo e da luxúria, sem sustança afetiva. O sexo é bom. Mas não é igual. É legítimo dublar corpos?

A longa estrada do tempo tem seus caprichos. Ela tende a transformar todo um amor imenso em quase nada, apagando os detalhes, deixando só os rascunhos da história em linhas muito gerais. Quase nada. Mas o quase é mais um detalhe também. É por esse fio de memória que um grande amor se oxigena na história de nossas vidas e não morre nunca. No máximo, fica cataléptico. Dorme para despertar ao seu capricho.

Não, não adianta tentar esquecer. Durante muito tempo os detalhes vão viver. Fato é que tentar apagar detalhes entranhados em nossa carne, em nossa alma, em nossa história é querer apagar uma parte de nós. Não se passa borracha em vidas. Memórias não são retornáveis. Nem devem ser. A antologia universal do amor guarda algumas páginas para os nossos amores. Amores que se foram, é verdade. Mas que deixaram em nós traços de si, nos tornando melhores e nos preparando para outro alguém que tecerá uma vida cheia de mais outros detalhes, feito um manto do Arlequim. É mais prudente guardar nossa caixa de detalhes dos que cruzaram nossas vidas e acarinhar cada souvenir deixado por quem passou do que fingir que não existiu histórias que nos trouxera até aqui. Ciclos precisam se fechar para que outros se abram. Mas não precisam sumir. Se o novo amor exige isso, livre-se dele. Ele não respeita seus pedaços. Ele não entende que nós somos o que nós temos sido. Que amores que passaram e de certa forma ficaram fizeram de nós as pessoas por quem ele se apaixonou.

Porque um amor nunca acaba. Um verdadeiro amor se entranha na gente. Por mais que ele passe no tempo cronológico e os corpos deixem de se encaixar ligando as almas, um amor dos vera finca morada dentro de nós e por muito tempo insiste em viver ali. Em detalhes.

3 comentários em “Detalhes

    Jorge GhostWriter Cativo disse:
    11/12/2011 às 11:02

    Saudosas palavras de um ser magistral….

    blogdokokay disse:
    17/12/2011 às 11:17

    Lindo. Perfeito, como sempre.

    Dora disse:
    07/01/2013 às 15:43

    “Alguns outros amores, por outro lado, nos amarão bem mais e melhor do que o suspenso. Esses nos trarão à memória a tristeza da potencialidade não exercida daquele amor que acabou, que não foi tudo aquilo que poderia ter sido”.

    Como diria Manuel Bandeira, em outro contexto: a vida inteira que podia ter sido e que não foi.

    Talvez seja essa, a maior dor.

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